Pouco a pouco o meu ecossistema vai-se construindo. Já tem fronteiras, alguns habitantes - o Raimundo do Sanzala, a Rosa do Tia Amélia - percursos e rituais. Se fosse turista, por exemplo, iria beber a minha cerveja de fim do dia ao Antigamente (procurei o link, mas aquilo pertence a um francês e não tem um site). O restaurante é muito bonito e está bem situado, na esquina mais bonita do Reviver (designação algo patética para uma parte do centro histórico que foi recuperada a fim de servir de isco para a classificação de Património da Humanidade). Mas não sou. Prefiro o mercado, o sorriso da Rosa, a ideia de que sou parte daqui, não a de que estou aqui - apesar de ser parte daqui ser, invariavelmente, estar aqui, mas isso é uma coisa que não posso mudar; não sei sequer se quero.
Ontem fui ao concerto do Baloji et l'Orchestre du Katumba. Não gosto muito de hip hop, mas gostei do concerto, da energia do jovem cantor, da excelência do guitarrista (que toca com Franco e com Sam Mangwana, ce n'est pas n'importe quoi) e do baixo. Estava com J., um francês que conheci no cais da AVEN. Navega sozinho há seis anos, mas não se define como um marinheiro. Nunca tinha pegado num barco antes, de resto: navegou em tripulação de La Rochelle a Vigo quando comprou o barco (se não me engano, um Garcia). É encenador de espectáculos, de grandes projectos - trabalhou um ano em São Petersburgo, por exemplo, para os trezentos anos da cidade -. Quando chegou a Vigo a tripulação desembarcou, como previsto, e ele continuou. Trabalhou com uma ONG chamada Voiles sans Frontières, ou coisa que o valha, no Senegal; com outra, espanhola, em Cabo Verde; depois atravessou e veio para o Brasil. Daqui vai para a Guiana, e em seguida deixar o barco num lado qualquer para ir a França passar dois ou três meses.
J. é um apreciador de vinhos, e acredita que o nosso sistema não funciona porque a economia deixou de pôr o "homem no centro". É daquelas fórmulas em que os franceses são mestres, bonitas e vazias. Conversamos sobre isso, sobre o "sistema", sobre a ajuda humanitária e a "solidária" - aparentemente já não se deve dizer ajuda ao desenvolvimento, parece mal - e acabamos a beber uma caipirinha no Raimundo.
Não sei se o vou voltar a ver. Espero que sim. Não porque tenha grandes instintos tribais - não tenho - mas porque gosto de pessoas que aliam inteligência, sucesso, humildade, humor, distância, coragem e uma série de coisas mais cujo nome não recordo agora.
AVEN significa Associação de Vela e qualquer coisa Náutica [do Maranhão]. Fisicamente consiste numa pequena barraca sobre palafitas com um pontão de vinte metros na margem sul do Igarapê Ana Jansen, uma zona da cidade chamada Ponta da Areia, o quarteirão chique e caro da cidade.
Sérgio tem ali a sua casa, a cem metros, uma vivenda de um andar numa zona de arranha-céus. Comprou um lote quando ninguém queria aquilo, ninguém queria lá viver. Hoje é a zona mais cara de São Luís. A AVEN foi construída sem qualquer ajuda de qualquer poder público, diz-me Sérgio com um certo, e mais do que justificado orgulho. "Um dava trinta reais, o outro oitenta e fomos fazendo isto, uma madeira depois da outra", é como Sérgio resume a coisa. Imagino que tenha sido mais complexo e difícil, mas não é pessoa para perder muito tempo com dificuldades. Vou fazer-me sócio: também não gosto por aí além de dificuldades, sobretudo as que já passaram.
Ao lado do estaleiro de Sérgio há um Estaleiro Escola. Hoje fui lá a uma reunião com o director, por causa do seminário. Sérgio não gosta muito dele, diz que aquilo é um "elefante branco", que não produz nada de jeito, etc. A julgar pela "reunião" de hoje tem decerto razão. Passo os pormenores, não interessam; mas serviu para confirmar que quem vive à mama do estado é igual em todo o mundo. Não me cheira que tenha muito sucesso - não sei sequer se verdadeiramente o desejo. Uma injecção de duas horas sobre os méritos do senhor à frente daquela meritória instituição fariam vacilar o mais determinado dos determinados.
É isto, um ecossistema, não é? O meu até já tem parasitas, e plantas carnívoras.
Ontem fui ao concerto do Baloji et l'Orchestre du Katumba. Não gosto muito de hip hop, mas gostei do concerto, da energia do jovem cantor, da excelência do guitarrista (que toca com Franco e com Sam Mangwana, ce n'est pas n'importe quoi) e do baixo. Estava com J., um francês que conheci no cais da AVEN. Navega sozinho há seis anos, mas não se define como um marinheiro. Nunca tinha pegado num barco antes, de resto: navegou em tripulação de La Rochelle a Vigo quando comprou o barco (se não me engano, um Garcia). É encenador de espectáculos, de grandes projectos - trabalhou um ano em São Petersburgo, por exemplo, para os trezentos anos da cidade -. Quando chegou a Vigo a tripulação desembarcou, como previsto, e ele continuou. Trabalhou com uma ONG chamada Voiles sans Frontières, ou coisa que o valha, no Senegal; com outra, espanhola, em Cabo Verde; depois atravessou e veio para o Brasil. Daqui vai para a Guiana, e em seguida deixar o barco num lado qualquer para ir a França passar dois ou três meses.
J. é um apreciador de vinhos, e acredita que o nosso sistema não funciona porque a economia deixou de pôr o "homem no centro". É daquelas fórmulas em que os franceses são mestres, bonitas e vazias. Conversamos sobre isso, sobre o "sistema", sobre a ajuda humanitária e a "solidária" - aparentemente já não se deve dizer ajuda ao desenvolvimento, parece mal - e acabamos a beber uma caipirinha no Raimundo.
Não sei se o vou voltar a ver. Espero que sim. Não porque tenha grandes instintos tribais - não tenho - mas porque gosto de pessoas que aliam inteligência, sucesso, humildade, humor, distância, coragem e uma série de coisas mais cujo nome não recordo agora.
AVEN significa Associação de Vela e qualquer coisa Náutica [do Maranhão]. Fisicamente consiste numa pequena barraca sobre palafitas com um pontão de vinte metros na margem sul do Igarapê Ana Jansen, uma zona da cidade chamada Ponta da Areia, o quarteirão chique e caro da cidade.
Sérgio tem ali a sua casa, a cem metros, uma vivenda de um andar numa zona de arranha-céus. Comprou um lote quando ninguém queria aquilo, ninguém queria lá viver. Hoje é a zona mais cara de São Luís. A AVEN foi construída sem qualquer ajuda de qualquer poder público, diz-me Sérgio com um certo, e mais do que justificado orgulho. "Um dava trinta reais, o outro oitenta e fomos fazendo isto, uma madeira depois da outra", é como Sérgio resume a coisa. Imagino que tenha sido mais complexo e difícil, mas não é pessoa para perder muito tempo com dificuldades. Vou fazer-me sócio: também não gosto por aí além de dificuldades, sobretudo as que já passaram.
Ao lado do estaleiro de Sérgio há um Estaleiro Escola. Hoje fui lá a uma reunião com o director, por causa do seminário. Sérgio não gosta muito dele, diz que aquilo é um "elefante branco", que não produz nada de jeito, etc. A julgar pela "reunião" de hoje tem decerto razão. Passo os pormenores, não interessam; mas serviu para confirmar que quem vive à mama do estado é igual em todo o mundo. Não me cheira que tenha muito sucesso - não sei sequer se verdadeiramente o desejo. Uma injecção de duas horas sobre os méritos do senhor à frente daquela meritória instituição fariam vacilar o mais determinado dos determinados.
É isto, um ecossistema, não é? O meu até já tem parasitas, e plantas carnívoras.
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