sábado, 14 de abril de 2012

São Luís, Maranhão, Brasil, 14-04-2012

S. diz-me com o ar mais sério deste mundo que o hábito brasileiro de cuspir no chão é uma herança da colonização portuguesa. Insistimos ambos. "S., o Brasil é independente desde 1822". "Sim, mas isso é uma coisa que você só vê nos estados onde a influência portuguesa foi maior [isto é, nos estados do Nordeste]". Só vacila quando lhe digo "isso é passar um atestado de menoridade ao povo brasileiro, dizer que em quase duzentos anos não foi capaz de aprender nada".

S. trabalha numa organização (não disse ONG, vá lá - os brasileiros pronunciam o acrónimo, não dizem ó ène gê mas ongue) de defesa ambiental. Partilha comigo o excesso de peso, a fealdade e o gosto pela provocação. No primeiro governo Lula trabalhou no Ministério do Ambiente, e conta-me que nem eles conseguiram controlar o IBAMA - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - uma organização fundamentalista e idiota, desculpem o pleonasmo.

"Nem nós conseguíamos dominá-los", explica-me. "A única forma que encontrámos de lhes reduzir um bocadinho o poder foi dividi-los em dois". Isto diz tudo sobre a burocracia em geral, não só sobre a brasileira.

(Para se ter uma ideia do nível de patetice: nos anos sessenta foi construída uma barragem numa área que agora está à frente da cidade - e na altura também estava -. Naturalmente a baía foi assoreando, e hoje seca de todo; na maré baixa é um lodaçal intransitável. O IBAMA opõe-se à sua dragagem. Não sei qual o argumento, mas nem o facto simples e irrefutável de que antes da barragem os navios atracavam em S. Luís e hoje nem as lanchas que vão para Alcântara conseguem navegar na baixa-mar o faz mudar de ideia. Histórias como esta são aos milhares, e podiam servir de base para uma teoria da burocracia como instrumento do seu próprio poder, e não dos fins para que foi criada. Já servem, verdade seja dita.)

O que me aflige no Brasil - e eu estou longe, muito longe, de ser um ambientalista - é a sujidade em tudo quanto é sítio; mas sobretudo na água, porque me toca mais, claro. Deitam tudo, mas tudo, para o mar, para o rio, para o igarapé. Plásticos, televisores velhos, lixo, merda, tudo vai para a água. No caminho do estaleiro atravessa-se o mangal por uma ponte e a quantidade de lixo que ali se acumula dói. Culpa dos portugueses, claro está. Se tivessem sido colonizados por holandeses hoje seriam o povo mais limpo do planeta, suponho.

A certa altura S. pergunta-me de que gosto no Brasil. "É visível que você gosta do Brasil", engana-se. "De que gosta?" É uma pergunta que me faz reflectir. "Gosto do povo". É verdade. É estranho mas é verdade. São maioritariamente (há excepções, claro) mentirosos, preguiçosos, desonestos e pedinchões, mas são adoráveis. "E da cultura - de Jorge Amado, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Jobim, Vinicius, João Gilberto; gosto da paisagem (quando não está coberta de lixo) e do clima; da capacidade de improvisação das pessoas, do seu sentido de humor, do seu voluntarismo". Hesito um pouco e concluo "o brasileiro é um povo fundamentalmente humano. Tem todas as qualidades e todos os defeitos que fazem do homem homem". Talvez seja um bocadinho paternalista, esta visão; mas se o é S. não o diz.

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Preciso de emagrecer, é certo. Mas vou ao mercado comprar 100 gr de castanha de caju (três reais. Se já tiverem visto preço pior estão como eu) e o rapaz pisca-me o olho (sem quaisquer intenções, apresso-me a precisar), põe 140 gr no saco e faz-me sinal "schiu, não digas a ninguém"; pouco depois vou comprar uma patinha de caranguejo à Rosa Crioula (não é a Rosa do mercado, é outra, que tem uma banca no passeio onde vende comida). Pago uma, volto para a segunda - são simples e irrecusavelmente deliciosas - e ela oferece-me a terceira; venho jantar à pousada e Valquíria, a cozinheira que às vezes serve à mesa, e quando serve não há massas para ninguém vai para a cozinha de propósito fazer-me um spaghetti Carbonara "porção individual" que é para aí o dobro da porção "duas pessoas".

Não sei como fazer para emagrecer nestas condições. Não vou cá ficar tempo suficiente para comprar uma bicicleta, não posso evitar esta gente, e já ando mais de uma hora por dia a um passo que pretendo rápido (e nem sempre é, eu sei). O mais fácil está feito - reduzi drasticamente o consumo de álcool -; agora há que reduzir o resto. A verdade é que ando a comer em restaurantes há mais de sete meses (com excepção da viagem da Colômbia e mais duas ou três pequenas travessias que fiz) e estou bastante farto.

Isto dito não consigo impedir-me de me lembrar das senhoras do mercado do Marin, que gostavam muito de mim e me enchiam o prato de tal maneira que tinha de o ir esvaziar no lixo às escondidas...

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Sérgio não apareceu no estaleiro. Está atolado (parece-me o termo correcto) no 43 que pôs na água há uma semana. Levantar B. para o seco está a transformar-se num desafio tão grande como foi em Parnaíba, com a agravante de ser um desafio mais agradável: é como o big game fishing, em que se pescam peixes de trezentos quilos com linhas cuja resistência não excede os cinquenta. Aqui trata-se de pôr B. na paisagem mental de Sérgio sem que ele se assuste e nos mande embora, ou nos deixe para as calendas gregas. Assusta-me muito, esta transformação de uma coisa que parecia simples e linear num desafio.

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