quarta-feira, 18 de abril de 2012

Gustavia, St. Barthélemy, 18-04-2012

Devia haver pré-requisitos para o exercício da autoridade. Não se diz a alguém que está errado sem antes lhe ter dito o que teria de fazer para estar certo, pelo menos no que diz respeito a matérias que não se inscrevem dentro dos limites do senso comum, como por exemplo querer uma cama feita de lavado todos os dias por uma só hospedeira que tem cinco camarotes para cuidar todas as manhãs (serviço de lavandaria incluído). Foi assim, de maneira absurda, que recebi ontem a minha primeira repreensão do armador. Espero que seja a última: o fim do projecto do Luís no Brasil é o mote para dar seguimento ao plano A, interrompido precocemente, que me obrigou a este plano B. Por mais enriquecedora que tenha sido a experiência, e por mais tentador que seja continuar aqui a ganhar muito dinheiro para me deitar e acordar com dores no corpo e tentar não ser vista, adivinhando ao mesmo tempo os desejos mais íntimos dos meus empregadores, sei que não é isto que quero. Também não sei bem o que quero, mas conto reconhecê-lo quando o encontrar. Sempre me foi mais confortável decidir pela negativa: saber onde não quero estar e o que não quero fazer não são nortes, mas têm servido para não naufragar. Daqui a mais ou menos um mês espero estar contigo a aprender a governar e a dar o lais de guia, mas para isso é preciso que alguém nos queira e que eu deixe o J. Sob todos os pontos de vista, não me sinto segura a deixar um trabalho sem outro na mão. Já o fiz uma vez e, apesar de tudo ter acabado bem, não me parece certo escolher a intranquilidade se quero uma vida tranquila -- o que, só por si, me deixa extremamente inquieta.

Um dia antes da repreensão o armador foi impecável. Trouxe toda a tripulação a almoçar fora (menos o desgraçado do J., que ficou a guardar o barco) num restaurante/praia chamado Nikki Beach, uma das coisas mais bonitas que já vi se não tivesse gente nem restaurante. A ilha parece a brincar: em quatro viagens de táxi não vi um único erro urbanístico, um edifício indubitavelmente feio (daqueles que até as pessoas de mau gosto detestam) ou lixo no chão. As estradas, não sendo perfeitas, são bastante decentes; o aeroporto tem uma pista de aterragem que parece uma miniatura e está deliciosamente localizada.  As ruas de Gustavia são íngremes e lembram-me Cascais no Verão, tanto que não me teria surpreendido se houvesse um Santini ao virar da esquina.

«Sabia que há dois mil portugueses a trabalhar na construção em St. Barthes? A população total é de 9 mil.»

Como quase todos os portugueses (enfim, os patrioto-saloio-sentimentais como eu) fico satisfeita por saber que há, por perto, tanta gente a falar a minha língua. Por ver que o patrão tem o cartão de um terapeuta de apelido Pereira (o meu) na mesa de cabeceira. Por ver uma galeria "Alves Monteiro" em Marigot. Por ver que o filho dos queques de West Palm Beach que cá estiveram veste camisas Papo D'Anjo. Por me lembrar da dona do Hemingway's, em St. John's, e do seu apelido Camacho, herança do avô madeirense que tinha construído aquele edifício que tem esse restaurante onde eu preciso de voltar a ver o pôr do sol amanhã, se possível. E alguma vergonha de que tenha de vir um extraordinário estrangeiro como Jeremy Irons dizer à Câmara de Lisboa que a cidade não pode estar assim, como todos sabemos que está. É lugar-comum, nem sei graças a quem, mas só tenho saudades da luz de Lisboa. Tenho visto lugares muito bonitos, mas ainda não vi todos os que queria ver; e, se vir, sei de antemão que não deve haver uma luz assim em nenhum deles, capaz de encher um frasco.

O taxista Mathurin aluga um pequeno estúdio em Gustavia a um casal de portugueses. É também baixista numa banda de rock e noutra de música caribenha, através da qual é muitas vezes convidado para cantar em festas de portugueses. Gosta de nós. O meu francês é uma treta, mas cá nos entendemos. Pergunto-lhe se é de St. Barthes e surpreende-me: «Sou. O meu pai foi o primeiro taxista e proprietário de um táxi na ilha.»


Com o calor e o Chablis Grand Cru a subir-me à cabeça desço do carro, com o aviso de que o capitão ainda lhe deve dinheiro. Guardo o cartão a pensar numa lua-de-mel. É um ritual que não aprecio por aí além, mas também nunca tinha ido a Nikki Beach. Se a praia falasse, sussurraria "lua-de-mel"  ao ritmo da rebentação. Basta nadar cinco minutos para chegar às ondas que não chegam à praia. Se os surfistas não forem lindos de morrer, chega-se vivo.

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