segunda-feira, 30 de abril de 2012

Turista e pai







As fotografias estão um bocadinho turista de mais para o meu gosto, mas paciência. Por agora é o que se arranja.

São Luís, Maranhão,Brasil, 30-04-2012

Amanhã é feriado e a cidade está vazia desde sábado. Até os jornais estão vazios, ainda mais do que o habitual. Mas o cúmulo da supresa foi hoje: o Estado tinha duas notícias internacionais! Duas. Uma sobre as eleições no México - o PRI está de volta e é o favorito - e uma bomba na Nigéria mata trinta cristãos. As fontes foram de ponte, está visto.

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Hoje fui passear ao Shop Rio Anil, onde no outro dia fui a correr comprar uma garrafa de vinho para oferecer. É maior do que o Shop São Luis, sem dúvida. Mas é um igual desolo. Todos os centros comerciais o são, não é?

Continuo a não encontrar os atacadores e as lentes escuras para os óculos; em contrapartida encontrei outras coisas que não esperava, é verdade. E dei um grande passeio de autocarro por uma zona da cidade onde raramente vou.

Esse era um dos objectivos, de resto: sair do Reviver, do Centro,  dos sítios que conheço e ir para outros lados.

São Luís é uma cidade enorme, pois há relativamente poucos prédios. A maioria da população vive em casas e a cidade, apesar de nem ser muito grande para os padrões brasileiros - é a 16ª, com cerca de um milhão de habitantes - estende-se por dezenas de quilómetros quadrados.

Gosto de andar de autocarro; é uma forma barata e interessante de passar o tempo. Às vezes, em Paris, quando não tinha dinheiro, fazia isso: metia-me num autocarro qualquer, ao acaso, e fazia uma volta ou duas do percurso. Em Londres nunca o fiz, não sei porquê. Preferia andar.

Andar de autocarro em São Luís é menos agradável do que em Paris por três ordens de razões:

  • Os autocarros são menos confortáveis, conduzidos de uma forma mais agressiva e  as ruas estão em muito pior estado;
  • As paisagens - a humana e a física - são mais feias;
  • Por fim, mas não menos importante: eu estou em São Luís. Se estivesse em Paris estaria decerto a chorar pelos autocarros de Antananarivo (onde estive um dia de passagem  e de que não guardo especiais recordações), da minha bem amada Buenos Aires ou pelos de outro lado qualquer que na altura me passasse pela cabeça.


A verdade é que nem toda a São Luís cheira mal. Há por vezes grandes extensões de terreno sem construções - são bocadinhos de selva, o termo não é um exagero - no meio da cidade, e cheiram bem. Passei por um que tinha cinco ou seis cavalos a pastar; noutro a selva chegava aos limites do muro. Estive quase para descer, aquilo parecia uma floresta amazónica, mas já estava na volta e com vontade de comer um belo naco de carne do Dom Francisco.

Andei um bom bocado - não tanto como os nove quilómetros de ontem, mas metade disso. Gosto desta mistura de calor e vento; e hoje, com a cidade a meio gás por causa do feriado, havia pouco trânsito, pouco barulho, pouca gente. Surpreendi-me a pensar que talvez o erro tenha sido vir para o Reviver, que se tivesse ficado noutro lado talvez a cidade não me saísse agora pelos olhos como sai. Não sei. Não é só a cidade, são as pessoas, a sua total falta de confiabilidade, a impossibilidade de se acreditar no que quer que seja.

Não sei.

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A Lena foi para o aeroporto às duas da manhã, mas o avião só saíu às sete e meia. Quando chegou a Recife o saco não apareceu. Ficou em Fortaleza. Escreveu-me a dizer que chorou como uma estúpida. Por muito menos do que isso conheço muita gente que teria chorado muito mais, minha filha. Deve ter sido a viagem mais sem sentido de que ouvi falar nos últimos anos.

Do que me sinto parcialmente culpado, porque fiquei com a data que o senhor da agência me deu no ouvido e não olhei para a do papel.

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domingo, 29 de abril de 2012

São Luís, Maranhão, Brasil, 29-04-2012

Ontem a Lena foi para o aeroporto, mas o avião era hoje. O senhor da agência de viagens enganou-se quando me disse a data de regresso e eu não li o papel todo. Hoje foi para o aeroporto e ao fim de seis horas de espera avisaram que o voo ia ser anulado.

A TAM pagou-lhe o hotel, o táxi e um hamburguer, aparentemente; mas isso não a impediu de me dizer "Pai, estou farta do Brasil". Não nos vimos: ela foi para o hotel, trocámos duas ou três mensagens no Facebook e refugiou-se no bendito sono. Volta para o aeroporto às duas da manhã.

Sei o que queres dizer, Helena.

Hoje o motorista do camião que devia ter trazido o mastro, com quem tenho falado praticamente todos os dias desde que se comprometeu a trazer-mo, disse-me que afinal não podia. Esperou e fez-me esperar mais de uma semana.

"Estar farto" já foi há muito tempo. Agora sonho com bombas atómicas, bombas termonucleares, bombas de fragmentação, distribuição forçada de crack, uma espécie de Zorro gigante e vingador nos céus do país; e depois disto tudo caixas de champagne em cada um dos aviões que me levará daqui.

Não é muito original. Hoje comentava com T., a governanta da pousada, quão difícil é trabalhar no Brasil. "No Nordeste", corrigiu-me. "Em São Paulo não é assim; eu também estou ansiosa por regressar". É de São Paulo e veio aqui só para dar uma ajuda na formação do pessoal. Coisa que tem feito com um sucesso considerável, mas à custa de uma dedicação e uma quantidade de trabalho absolutamente notáveis. Mas está, ela também, pelos cabelos.

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De maneira acabei no cinema. Há uma Mostra do Cinema Francês, os bilhetes são de borla, fui ao acaso. O filme de hoje chamava-se A tout de suite, de Benoît Jacquot.

É uma interminável xaropada. Os franceses dominam à perfeição a arte de estragar uma história (digo os franceses e imediatamente me vêm ao espírito os nomes de Truffaut, Rohmer, Malle, Melville, Resnais, o meu cineasta favorito, de longe, toutes catégories confundues. Não são os franceses, claro: é só a maioria deles; ou alguns deles. Não sei).

É a história, ao que parece verídica e filmada a preto e branco, de uma jovem burguesa que nos anos 70 se apaixona por um criminoso e acaba por acompanhá-la na fuga - Espanha, Marrocos, Grécia.

Daí telefona ao pai, que a vem buscar (com a mãe, que até aqui não tínhamos visto, porque se não a jovvem não teria muitas razões para se apaixonar por um marginal e blábláblá). Depois o jovem marginal morre e a jovem burguesa vai trabalhar para um Club Med.

O filme podia ser bom; mas é uma antologia de clichés, lugares comuns, personagens vazias, caricaturais, desinteressantes, banais. O criminoso não é assim tão criminoso, a mãe não é assim tão distante, o pai até é bom pai.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

São Luís, Maranhão, Brasil, 27-04-2012

"Há algum sítio com música ao vivo perto daqui?", pergunto ao senhor da recepção. Ele dá-me uma resposta intricada, fala-me de um sítio à direita ao fundo da primeira rua à esquerda, depois de não sei o quê e antes de outra coisa qualquer.

Não percebeu a minha ironia. Num raio de duzentos metros do hotel há pelo menos - por defeito, não por excesso - vinte grupos de música, alguns a dez metros uns dos outros (no plural; aqui ao virar da esquina são três em menos de cinquenta passos). Helena ri-se, um bocadinho consternada. "Ele não percebe o teu sentido de humor". "Tanto melhor".

De maneira levei-a ao Bar do Porto, um dos meus watering holes [alguém me pode ajudar a traduzir isto para português, por favor?] favoritos. Depois fomos comer um cachorro quente - o jantar foi uma mistura de caipirinhas, cerveja e pastéis e achei que um bocadinho de lastro não fazia mal.

Nas noites de sexta-feira o Reviver é uma espécie de cloaca que, para além de mijo e merda inclui barulho e vida. Cloaca talvez não seja o termo apropriado ...o Reviver é uma espécie de vida que para além de mijo e merda inclui barulho e gente, muita gente. Parece-me melhor. Num passeio damos com três gajos a mijar como se estivessem em casa - ou melhor, num urinol público, porque tinham os pés em rios de mijo, o deles e o dos anteriores, suponho.

Deve fazer parte do esforço, em curso, do Estado do Maranhão para desenvolver o turismo, mictório.

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A Lena veio e vai amanhã, bela e imperial como sempre; mas cada vez mais.

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Hoje tive uma boa notícia relativa ao B.. Foi como pôr um blue marlin de 300 quilos, ao fim de muitas horas de combate, no painel da popa. Agora há que pô-lo dentro, mas infelizmente não é uma tarefa que possa fazer sozinho.

Raramente tirei grandes recompensas financeiras do meu trabalho, ou dos meus sucessos no trabalho. B. ensinou-me que as vitórias morais são necessárias, mas não suficientes. Só por isso estar-lhe-ei grato até ao fim dos meus dias.

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Há uma certa beleza na estupidez absoluta: a incapacidade de se ver. Lacan disse um dia que a estupidez é uma histeria; basta alguém saber-se estúpido para deixar de o ser. A estupidez é incapaz de se saber, porque saber-se implica tanta inteligência como saber.

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Em breve estarei longe daqui, provavelmente no México ou na Grécia. Gosto do México porque nunca lá estive, e da Grécia porque já lá estive. Não há outra maneira de tomar decisões que não seja a direito, quando se é assim.

Enfim, não sei se a direito é sinónimo de sem hesitações, mas acho que não. Cogli la prima mela.

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Hoje fomos passear ao centro comercial São Luís, muito pequeno mas com a indestronável vantagem de ser perto do Reviver. Em menos de dois meses de São Luis já fui quase tantas vezes a um centro comercial como em oito anos de Lisboa fui ao Colombo.

Talvez seja este a melhor forma de aprender a lidar com QI baixos. Ou com espectros, não sei.




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Por falar em espectros: hoje a música na rua - e portanto em toda a pousada - não vai acabar antes das cinco da manhã. Se tiver sorte não conseguirei dormir, outra vez.

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quarta-feira, 25 de abril de 2012

São Luís, Maranhão, Brasil, 25-04-2012

Ia o 25 de Abril passando se eu lhe prestar a minha singela homenagem. Vou para o inferno, isso eu sei; mas prefiro o inferno da minha infância ao dos adoradores de sol e outras religiões. Para aquele faço tudo o que posso para ter a certeza de que vou; não poupo esforços. Para este prefiro não tentar os meus anjos da guarda.

Na Escola Náutica os chefes da Associação de Estudantes um dia convocaram-me para uma reunião; não me lembro dos pormenores, mas sei que a agenda era o facto de eu ser, frequentemente, o único voto contra nas AGE (Assembleia Geral de Estudantes, para quem vivesse noutro planeta nessa altura, ou ainda não vivesse de todo no nosso). "E isso impede-nos de ter votações por unanimidade".

Lamentei imenso; fui discreta e amigavelmente avisado de que as consequências de tal traição à classe não seriam sempre simples palavras. Continuei a lamentar, e  a votar como achava que devia votar; isto é, contra.

Verdade seja dita que não houve consequências nenhumas, nem verbais nem manuais.

Aqui fica portanto a minha singela homenagem ao 25 de Abril. Não lhe renego as vantagens, mas prefiro o outro 25, um ano e sete meses mais tarde.

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São onze da noite e na rua o pagode vai farto (pagode é o termo que designa estes momentos de música de rua, ou qualquer festividade semelhante - música aos gritos a sair de uma parede de som no bar ao lado da banda que toca na rua, por exemplo). Felizmente os únicos barulhos que me impedem de dormir são os que vêm de dentro. Com o de fora pode o meu sono muito bem.

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A minha filha Lena chegou ontem, bela e imperial. Está a fazer um voluntariado de dois meses na Prefeitura de Recife, num lar para miúdos de rua. Não me parece convencida a 100% com a experiência. Um dia dir-lhe-ei que a maioria dessas estruturas serve para apaziguar a má consciência das pessoas que provocam a situação; mas para os pobres são como tratar uma perna partida com aspirina: pode enganar a dor, mas sem gesso a perna ficará torta para sempre.

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As coisas no B. avançam devagar. O Brasil (enfim, o Nordeste, nunca é de mais repeti-lo) pertence àquele grupo de coisas, pessoas, países que só têm duas velocidades: devagar e pára. Às vezes há uma terceira, a marcha-atrás; mas como também é lenta a gente vai levando.

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Hoje G., um skipper que trabalha ocasionalmente para o Sérgio levou-nos a dar um passeio de carro por São Luís. Fiquei a saber um pouco da história da cidade; e como sempre perplexo com a capacidade que os brasileiros têm de amar o seu país. São o simétrico dos portugueses: eles são incapazes de ver o que o Brasil tem de mau; nós o que Portugal tem de bom.

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Assim vão os meus últimos dias em São Luís. Como de resto devem ser os últimos dias em qualquer lugar: com a certeza de que ficar não acrescenta nada ao que já fizemos, e diminui ao que vamos fazer.

Marigot, Saint Martin, 25-04-2012

Escrevo a pedido da minha família. Sou um coração-mole: se me pedem com carinho não resisto a escrever, mesmo que nada tenha para dizer e que, por conta de uma doença ou duas, os últimos dias tenham sido horríveis. Falo dos dias embora reconheça que não devemos confundi-los com a doença; os dias são bons, o Sol está aí, o vento também e o mundo gira apesar de nós -- o que é, de resto, a minha única motivação para deixar de estar doente, tudo o que há apesar de mim e também para mim. Estar por aqui, no mundo, é uma mistura feliz entre o ordinário e o extraordinário. M. diz-me «tu és simples, a vida é que é complicada» e lembro-me imediatamente de Carl Sagan, que ilumina o primeiro episódio de Cosmos com a frase «we are all made of star-stuff». Posso não ter ido a lado nenhum nestes dias, mas ainda não parei de viajar.

Mais uma semana curta demais para preparar o barco para o que aí vem. Duas pré-adolescentes, dois bebés, o armador e a senhora, duas amas, um mordomo e uma cozinheira. «Somos um grupo pequeno, imaginem se o barco estivesse cheio!», disse o armador quando me avisou que queria os lençóis mudados pelo menos a cada dois dias. A pouco e pouco deixo-me convencer de que sou eu que não dou para isto e de que qualquer outra hospedeira se vai portar aqui à altura, sem precisar de ser uma super-mulher. Passar os dias fechada, literalmente, dentro do barco deprime-me, além de me ter feito perder o bronze que custou tanto a ganhar (umas dez manhãs intermináveis na praia, sem exagero). Vim para as Caraíbas para navegar, não para trabalhar num hotel de marina. Tenho saudades do barulho do pano, quando ia com C. no CAMELOT e por acaso o vento nos faltava. Tenho saudades de fazer asneira a atracar (afinal, só o fiz umas sete ou oito vezes) e de o ouvir dizer «imagina se o vento viesse do outro lado, o que acontecia ao barco do vizinho?»; tenho saudades de chegar a casa exausta e de te encontrar sentado no honor-bar com quase tudo por fazer e 20 pessoas a chegar para jantar. Às vezes apetece-me bater-te. Não tanto quando estás por perto como quando estás longe, por estares longe.

No sábado fomos aos karts. Os rapazes arrastaram-me literalmente da cama (era dia de folga) e lá fomos, a torrar num carro que o J. alugou. A pista estava vazia e pagámos quase 25 euros -- eu com dinheiro emprestado pelo capitão, que os meus cartões só chegaram ontem (obrigada, pai) -- por sete minutos de velocidade alucinante... ou talvez não. Nunca tinha feito nada semelhante e fui bastante medrosa. Acelerei apenas nas duas rectas disponíveis e fiz todas as outras curvas -- apertadíssimas, claro -- a medo. Não sei exactamente o que acontece quando se bate a bordo de uma coisinha daquelas, mas a rapidez com que acelera assusta. Avisaram-nos de que encerravam a pista se batêssemos (de maneira a parar o carro), mas portámo-nos bem.  Antes da corrida os rapazes preencheram uma folha com os nossos nomes. Eu fiquei Poes. Houve gargalhada geral quando o senhor apontou para mim depois de os identificar e disse «you are Poes!». Acho que não me ria de uma coisa tão tola desde o secundário (a flatulência não conta).

No mesmo dia fomos também a Orient Bay, uma zona extremamente turística, com muitos resorts e hotéis que, decerto, prometem mais do que cumprem. A praia é enorme e bonita, mas está  cravejada de bares a anunciar happy-hours, alugueres de hobie cats, banana boats e coisas do género, o que me faz adorar a praia onde, em Antígua, fiz o sacrifício de me bronzear. Saint Martin é uma ilha linda que grita. Lembro-me agora de que o escreveste uma vez, e eu não saberia contar melhor. Mesmo que seja domingo e haja silêncio, para onde quer que se olhe há alguma coisa que agride. Sinto que já vi, aqui, o que tinha a ver; quero ir para outro lugar.

domingo, 22 de abril de 2012

São Luís, Maranhão, Brasil, 22-12-2012


É um bocadinho pedante dizer pizze em vez de pizzas e bruschette em vez de bruschettas, não é? Para o não ser teria de grafar pizas e brusquetas, mas não sei se alguém perceberia que estou a falar de um restaurante.

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O mega-festival de Heavy Metal, uma das provas provadas de que o turismo do Maranhão blá blá e o de São Luís blá blá blá começou mal; e tarde: cinco horas de atraso, bandas cncelaram a actuação por causa de não pagamento, instalações deficientes. Esta última é a minha favorita. Aquilo passa-se num terreno agrícola que tem "instalações para bois e cavalos" (estábulos e cavalariças). Durante o festival essas instalações são - ou seriam, mais provavelmente - usadas como "camping indoor". Mas a limpeza foi deficiente e nas cavalariças ainda havia "fezes de cavalo misturadas com a areia". Com entradas a 800 reais compreendo que os metaleiros pesados não tenham ficado muito contentes.

Mas é só uma impressão. Os jornais de hoje já falam daquilo como um sucesso, com um pequeníssimo espaço dedicado à explicação de uma das bandas que cancelou. Não cito, traduzo: sem pilim não há palhaços.

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Os cortes de luz na Pousada são frequentes. São provocados pela chuva, geralmente. Alguns são locais - só na pousada -; outros é todo o quarteirão que fica às escuras. 

Os jornais têm dois temas: o Estado, os vultuosos investimentos do Estado, as viagens, deslocações e inaugurações do Estado; e a corrupção,  desmandos, abusos do Estado. Mas tudo se passa como se estes dois temas fossem independentes um do outro, como se não houvesse pontes entre eles. Por vezes penso num cérebro no qual não há ligações entre os dois hemisférios.

A maneira mais rápida de transformar alguém num liberal convicto é pô-lo no Brasil dois meses.

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Uma das características do restaurante La Pizzeria (não é pedantismo; é o nome) é que não há um dia, um só, em que não falte qualquer coisa. Ou não há vinho, ou não há massas, ou lasagna em doses individuais, lasagna em doses duplas. Hoje não havia cervejas grandes - o que é aborrecido porque cada decilitro das pequenas custa 50% mais caro. Faltou também - isto pareceu-me mais siderante - gás para o forno onde fazem as pizze.

A mesa ao lado da minha - um grupo grande que devia ser de músicos do festival de heavy metal, e se não eram músicos eram festivaleiros - não estava muito contente; mas as pessoas eram surpreendentemente pouco agressivas (surprendentemente porque as roupas e os físicos levar-me-iam a pensar o contrário).

A falta de gás acabou por se resolver - uma história de garrafas, resolvida com a ajuda de um dos marinheiros da draga - ; e eu tinha pedido penne al ragú, o que ainda enfureceu mais os metaleiros pesados. Afinal eu cheguei bastante depois deles.

As encomendas deles chegaram; eu comi a minha massa - uma dose dupla que acabei por comer toda, porque estava cheio de fome e, ou, porque a dose não era bem dupla. Estavam deliciosos, os penne.

sábado, 21 de abril de 2012

São Luís, Maranhão, Brasil, 21-04-2012

O Brasil é uma mulher linda com uma enorme e peluda verruga no nariz; não a tira porque acha que a verruga mal se vê, ou até lhe dá uma certa graça. Em todo o caso é parte dela, e nada do que é dela deve ser deitado fora.

O restaurante da pousada onde passo literalmente os meus dias é assim. Lindo, como a pousada toda, de resto. É uma pizzaria, e serve também lasagna, algumas massas e bruschette. Tudo é quase bom (excepto as pizze, cuja massa está a anos-luz da do Road Runners - ámen - e o recheio a milhas do do Cap Horn. Mas mesmo assim não são más; são só quase medíocres). Hoje comi uma lasagna que estava excepcionalmente boa. A bruschetta bolognese é boa, apesar de o pão ser demasiado espesso. Disseram-me que a de beringela também é muito boa.

O serviço é de uma simpatia e cordialidade só excedidas pela incompetência. A lista de vinhos é reduzida - escolho invariavelmente um Carmenere chileno que não é nada de especial, nem num sentido nem no outro. Quando estou assim encurralado vou lá comer; peço uma dose para duas pessoas e como o resto ao almoço do dia seguinte.

Nunca é de mais realçar a beleza da sala, a simpatia dos funcionários. São extraordinárias, ambas.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

São Luís, Maranhão, Brasil, 19-04-2012

No fundo talvez os lugares sejam como as pessoas: tirando as verdadeiramente más todas têm alguma coisa interessante; todas são interessantes. Se calhar ser homem é isso mesmo, poder dissimular um monte de qualidades debaixo de uma espessa capa de banalidade. Como qualquer lugar com mais de cinquenta habitantes, suponho. São Luís vista do meu quarto é uma cidade magnífica; quando saio é-o menos, mas cada vez o é mais. Enfim, magnífica nunca será - pelo menos não tão cedo. 

A questão está no olhar, na leveza de quem olha, em tudo de quem olha.

Vai começar em breve um festival de heavy metal. A música que agora oiço (são pouco menos das dez da noite) deixou de ser a habitual mescla de samba, batuque e bimbalhada: é heavy e só heavy. Não sei porque é que a malta do metal tem direito à exclusividade, mas apesar de não ser grande apreciador do género prefiro isto à cacofonia dos outros dias.

Até meados do século passado - não garanto a exactidão das datas, mas garanto tudo o resto - São Luís tinha sido fundada por portugueses. Faz este ano 400 anos. Por um português mestiço, de algures do interior do Brasil, convém precisar. Depois o discurso oficial mudou. Os portugueses (e mestiços ainda menos) não eram suficientemente chiques - afinal esta é a capital cultural do Brasil, a Atenas brasileira - e  a cidade passou a ter sido fundada pelos franceses. Já li várias coisas sobre o assunto e parece-me que a opção portugueses é a boa; mas isso interessa-me pouco, para dizer a verdade. No que me diz respeito até podiam ter sido fundada por chineses, grandes ex-campeões do cuspir na rua e ainda, sempre, da porcaria (diz-me quem conhece. Eu nunca lá estive).

Mas acho piada, isso acho. Num país com mais problemas do que cem metros de mangal mosquitos a solução ideal é, está bem de ver, reinventar o passado. Aplicasse ele tanta energia e criatividade a inventar o futuro e ninguém o agarraria.

Ou mesmo a conhecer o presente: a falta de cultura deste povo é siderante. O mundo exterior parece que não existe - e não falo de outros continentes. Anteontem C. dizia-me que encontra frequentemente pessoas que não sabem onde é o México. O México, porra! Não é propriamente a república de San Marino.

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A minha capacidade de adormecer em quaisquer circunstâncias vai ser posta à prova, esta visto. A rapaziada do metal está visivelmente a aquecer.

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O patriotismo tem coisas curiosas. Não sei ainda para onde vou depois disto, mas sei para onde não vou. Há um país no mundo, um só, para onde sei que não irei quando sair do Brasil.

Se pudesse escolher iria para a América Central. Nunca fui feliz na América Central (nem infeliz, de resto; só estive no Panamá duas ou três vezes, e de passagem). Será aconselhável regressar aos sítio onde sofremos, tanto quanto é desaconselhável voltar àqueles onde fomos felizes? (É? Não sei). A verdade é que passo a vida a tentar regressar a Portugal e cada vez que de lá saio venho um bocadinho pior.

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Chove desalmadamente. A música parou. É sol de pouca dura, com certeza.

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E aos livros onde fomos felizes, podemos voltar? A verdade é que reli o Nigger do Narcissus com mais prazer do que qualquer das vezes anteriores. Vou deixar o livro na Pousada, estou com peso a mais na bagagem. Custa um bocado, um volume com o Narcissus, o Youth, e uma série de contos que nunca tinha lido, entre os quais duas pérolas: The Secret Sharer e The Lagoon, qualquer delas melhor do que o Narcissus ou o Youth, tão mais conhecidos.

Lagoon é uma história de irmãos e tocou-me particularmente.

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O mar anda a querer vender-me a ideia que também sabe separar, não é só capaz de unir. Quando lhe dá para a parvoíce não fica atrás de ninguém.

Ou então talvez tenha razão: aquilo que ele pode separar não está unido. Ou aquilo que lhe resiste nada destruirá. Vá lá saber-se.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Gustavia, St. Barthélemy, 18-04-2012

Devia haver pré-requisitos para o exercício da autoridade. Não se diz a alguém que está errado sem antes lhe ter dito o que teria de fazer para estar certo, pelo menos no que diz respeito a matérias que não se inscrevem dentro dos limites do senso comum, como por exemplo querer uma cama feita de lavado todos os dias por uma só hospedeira que tem cinco camarotes para cuidar todas as manhãs (serviço de lavandaria incluído). Foi assim, de maneira absurda, que recebi ontem a minha primeira repreensão do armador. Espero que seja a última: o fim do projecto do Luís no Brasil é o mote para dar seguimento ao plano A, interrompido precocemente, que me obrigou a este plano B. Por mais enriquecedora que tenha sido a experiência, e por mais tentador que seja continuar aqui a ganhar muito dinheiro para me deitar e acordar com dores no corpo e tentar não ser vista, adivinhando ao mesmo tempo os desejos mais íntimos dos meus empregadores, sei que não é isto que quero. Também não sei bem o que quero, mas conto reconhecê-lo quando o encontrar. Sempre me foi mais confortável decidir pela negativa: saber onde não quero estar e o que não quero fazer não são nortes, mas têm servido para não naufragar. Daqui a mais ou menos um mês espero estar contigo a aprender a governar e a dar o lais de guia, mas para isso é preciso que alguém nos queira e que eu deixe o J. Sob todos os pontos de vista, não me sinto segura a deixar um trabalho sem outro na mão. Já o fiz uma vez e, apesar de tudo ter acabado bem, não me parece certo escolher a intranquilidade se quero uma vida tranquila -- o que, só por si, me deixa extremamente inquieta.

Um dia antes da repreensão o armador foi impecável. Trouxe toda a tripulação a almoçar fora (menos o desgraçado do J., que ficou a guardar o barco) num restaurante/praia chamado Nikki Beach, uma das coisas mais bonitas que já vi se não tivesse gente nem restaurante. A ilha parece a brincar: em quatro viagens de táxi não vi um único erro urbanístico, um edifício indubitavelmente feio (daqueles que até as pessoas de mau gosto detestam) ou lixo no chão. As estradas, não sendo perfeitas, são bastante decentes; o aeroporto tem uma pista de aterragem que parece uma miniatura e está deliciosamente localizada.  As ruas de Gustavia são íngremes e lembram-me Cascais no Verão, tanto que não me teria surpreendido se houvesse um Santini ao virar da esquina.

«Sabia que há dois mil portugueses a trabalhar na construção em St. Barthes? A população total é de 9 mil.»

Como quase todos os portugueses (enfim, os patrioto-saloio-sentimentais como eu) fico satisfeita por saber que há, por perto, tanta gente a falar a minha língua. Por ver que o patrão tem o cartão de um terapeuta de apelido Pereira (o meu) na mesa de cabeceira. Por ver uma galeria "Alves Monteiro" em Marigot. Por ver que o filho dos queques de West Palm Beach que cá estiveram veste camisas Papo D'Anjo. Por me lembrar da dona do Hemingway's, em St. John's, e do seu apelido Camacho, herança do avô madeirense que tinha construído aquele edifício que tem esse restaurante onde eu preciso de voltar a ver o pôr do sol amanhã, se possível. E alguma vergonha de que tenha de vir um extraordinário estrangeiro como Jeremy Irons dizer à Câmara de Lisboa que a cidade não pode estar assim, como todos sabemos que está. É lugar-comum, nem sei graças a quem, mas só tenho saudades da luz de Lisboa. Tenho visto lugares muito bonitos, mas ainda não vi todos os que queria ver; e, se vir, sei de antemão que não deve haver uma luz assim em nenhum deles, capaz de encher um frasco.

O taxista Mathurin aluga um pequeno estúdio em Gustavia a um casal de portugueses. É também baixista numa banda de rock e noutra de música caribenha, através da qual é muitas vezes convidado para cantar em festas de portugueses. Gosta de nós. O meu francês é uma treta, mas cá nos entendemos. Pergunto-lhe se é de St. Barthes e surpreende-me: «Sou. O meu pai foi o primeiro taxista e proprietário de um táxi na ilha.»


Com o calor e o Chablis Grand Cru a subir-me à cabeça desço do carro, com o aviso de que o capitão ainda lhe deve dinheiro. Guardo o cartão a pensar numa lua-de-mel. É um ritual que não aprecio por aí além, mas também nunca tinha ido a Nikki Beach. Se a praia falasse, sussurraria "lua-de-mel"  ao ritmo da rebentação. Basta nadar cinco minutos para chegar às ondas que não chegam à praia. Se os surfistas não forem lindos de morrer, chega-se vivo.

São Luís, Maranhão, Brasil, 18-04-2012

Qualquer viajante sabe que se não gosta de um lugar não é o lugar que está errado; é ele. Há excepções a esta regra, claro, mas são poucas. Os lugares são o que são: estão ali para ser conhecidos, investigados, andados, observados, cheirados. Pensava nisto hoje quando andava pelo centro de São Luís. Fui a uma livraria procurar um livro que um amigo me pediu. Estava sol, pela primeira vez em muito tempo; e calor, mas não abafado.

Também pela primeira vez em muito tempo olhei para as ruas com curiosidade, com prazer e simpatia, como se tivesse acabado de chegar - porque estou quase a ir-me embora, há uma simetria inesperada entre as chegadas e as partidas. Almocei num restaurante diferente dos que vejo habitualmente, comprei uma manga - a primeira manga boa que compro aqui - vi o movimento e a alegria das ruas.

B. está quase a acabar; aos poucos o espírito abre-se-me, torno-me receptivo ao que me rodeia, vejo para fora em vez de ver para dentro. São Luís está mais leve porque eu estou mais leve.

terça-feira, 17 de abril de 2012

São Luís, Maranhão, Brasil, 17-04-2012

Além de mim no carro há uma senhora com três crianças. Isso não impede Ângelo de telefonar a um amigo propondo-lhe um negócio "bom para si e bom para mim: você empresta-me cem reais hoje [segunda-feira] e eu pago-lhe cento e vinte na sexta. Tenho de pagar a prestação do carro amanhã, etc. etc.". O amigo diz que sim. Vinte por cento de juros em menos de uma semana só se deitam fora se o devedor não tiver nada, nem um braço para se partir. Ângelo tem os dois, e as duas pernas, e o seu transporte informal de São Luis para Vargem Grande tem toda a aparência de funcionar.

Aproveitei a deixa para lhe falar no mastro e ele pega imediatamente no telefone, fala com A que é amiga de B que é compadre de Z., polícia no posto onde o nosso mastro - vi-o depois - está, estendido no capim como um fósforo gigante deitado fora por um passante descuidado.

O carro é um Fiat pequeno - deve ser um Uno, ou coisa que o valha - mas como vou à frente estou mais ou menos confortável. Ângelo guia correctamente, as conversas são escassas, e a música é, estranhamente, boa - até Ne me quitte pas  ouvi, numa interpretação sofrível, é certo; mas infinitamente melhor do que a bimbalhada habitual. E Simone, também. O rádio é um leitor de DVD e dá uma imagem minúscula, mas suficiente para confirmar que era ela.

Não cheguei a entrar em Vargem Grande: fiquei numa estação de gasolina onde costumam parar os camiões. Andei por ali duas horas, mas de pouco serviu. Deixei o telefone ao senhor do restaurante e a um chauffeur que lá estava a comer e tem um amigo que tem um camião suficientemente grande.

Impossível não me lembrar do Burundi, quando andava pelas ruas de Bujumbura a mandar parar todos os camiões que via passar e lhes perguntava se queriam trabalhar para nós. Durou pouco, uma ou duas semanas; depois organizei uma base de dados de transportadores, e depois ainda veio uma frota de camiões com chauffeurs etíopes, já por aqui falei deles, nunca vi nada mais eficaz do que aqueles homens. A primeira vez na vida que comi comida etíope foi em Buja, numa festa para a qual me convidaram e onde eu pensava a cada momento que íamos todos ser alvo de um ataque: os Hutus ainda estavam em cima e aquilo era só Etíopes e Tutsis. Era o único branco e fiquei para sempre rendido àquele povo, que tanto gostava de conhecer melhor.

Aqui não lido com Etíopes e tenho pena.

Acabei por encontrar um camião já em São Luis: Ângelo - que fez tudo o que podia para me ajudar porque eu lhe disse que o ajudaria a pagar a prestação do carro que se contribuisse activa e concretamente para pôr o mastro aqui - lembrou-se de uma estação de gasolina onde os camiões páram à saída de São Luís. Não é bem uma estação de gasolina. É um enorme terreno onde há centenas de camiões de todas as formas e feitios. Em cinco minutos falei com três motoristas, um dos quais me pareceu credível. No próximo fim-de-semana veremos se a minha intuição foi correcta.

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Domingo fui ao teatro, hoje fui de novo. Num mês em São Luís fui mais vezes ao teatro do que num ano em Lisboa. As peças são de borla ou quase - com excepção de uma - os teatros a cinco minuto da Pousada. O contador está equilibrado - duas fracotas e duas boazitas. Aborrece-me um bocadinho a fisicalidade das representações - os actores parece que vão para o palco fazer ginástica - mas de uma forma geral o nível é bom. O ponto fraco é a encenação - no caso do Premier amour foi confrangedora. A de hoje foi francamente boa.

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Amanhã vamos finalmente pôr B. em seco. Esperar é a coisa que mais odeio, mas aqui é inevitável. Tenho tentado - e conseguido - manter uma pressão "leve, levemente, como quem chama por mim" e parece-me que a estratégia está a dar resultado. O Brasil (pelo menos o Nordeste) é um mercado de fornecedores, não de clientes. São eles que têm o poder. Em breve partirei, felizmente, porque nunca conseguiria habituar-me.

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Tal como não consigo habituar-me à falta de pudor, à indiscrição - bem intencionada, é certo - das pessoas. Mal nos conhecem perguntam-nos o que estamos aqui a fazer, de onde somos (de que país, há imensa gente que me pergunta se sou de Portugal), há quanto tempo chegámos, quanto mais vamos ficar, de que barco se trata (isto é menos frequente, porque normalmente corto curta a conversa), para onde vamos a seguir, se estamos sozinhos ou acompanhados e mais o diabo a sete. Não fiquei absolutamente nada surpreendido com o telefonema de Ângelo à frente dos passageiros.

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De hoje a uma semana chega a minha filha Helena. São Luis vai ficar muito mais bonita.

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São cinco da tarde e o Reviver prepara-se para a noite. As senhoras das bancas à frente do mercado chegam - umas com comida, outras com artesanato -; os bares do mercado enchem-se, e a fauna do bairro - drogados, pedintes, vendedores ambulantes, maricas, travestis, putas, turistas saem das respectivas tocas (as dos primeiros sendo os bancos ou os passeios do bairro). Já conheço algumas pessoas, cumprimentamo-nos como se fosse daqui e já tenho os meus ritos.

Mas estou em modo viagem, nada a fazer. Entre duas águas, ou três; de passagem. Há ano e meio que estou de passagem. E antes disso também estava; não sabia e não queria, mas estava.

sábado, 14 de abril de 2012

São Luís, Maranhão, Brasil, 14-04-2012

S. diz-me com o ar mais sério deste mundo que o hábito brasileiro de cuspir no chão é uma herança da colonização portuguesa. Insistimos ambos. "S., o Brasil é independente desde 1822". "Sim, mas isso é uma coisa que você só vê nos estados onde a influência portuguesa foi maior [isto é, nos estados do Nordeste]". Só vacila quando lhe digo "isso é passar um atestado de menoridade ao povo brasileiro, dizer que em quase duzentos anos não foi capaz de aprender nada".

S. trabalha numa organização (não disse ONG, vá lá - os brasileiros pronunciam o acrónimo, não dizem ó ène gê mas ongue) de defesa ambiental. Partilha comigo o excesso de peso, a fealdade e o gosto pela provocação. No primeiro governo Lula trabalhou no Ministério do Ambiente, e conta-me que nem eles conseguiram controlar o IBAMA - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - uma organização fundamentalista e idiota, desculpem o pleonasmo.

"Nem nós conseguíamos dominá-los", explica-me. "A única forma que encontrámos de lhes reduzir um bocadinho o poder foi dividi-los em dois". Isto diz tudo sobre a burocracia em geral, não só sobre a brasileira.

(Para se ter uma ideia do nível de patetice: nos anos sessenta foi construída uma barragem numa área que agora está à frente da cidade - e na altura também estava -. Naturalmente a baía foi assoreando, e hoje seca de todo; na maré baixa é um lodaçal intransitável. O IBAMA opõe-se à sua dragagem. Não sei qual o argumento, mas nem o facto simples e irrefutável de que antes da barragem os navios atracavam em S. Luís e hoje nem as lanchas que vão para Alcântara conseguem navegar na baixa-mar o faz mudar de ideia. Histórias como esta são aos milhares, e podiam servir de base para uma teoria da burocracia como instrumento do seu próprio poder, e não dos fins para que foi criada. Já servem, verdade seja dita.)

O que me aflige no Brasil - e eu estou longe, muito longe, de ser um ambientalista - é a sujidade em tudo quanto é sítio; mas sobretudo na água, porque me toca mais, claro. Deitam tudo, mas tudo, para o mar, para o rio, para o igarapé. Plásticos, televisores velhos, lixo, merda, tudo vai para a água. No caminho do estaleiro atravessa-se o mangal por uma ponte e a quantidade de lixo que ali se acumula dói. Culpa dos portugueses, claro está. Se tivessem sido colonizados por holandeses hoje seriam o povo mais limpo do planeta, suponho.

A certa altura S. pergunta-me de que gosto no Brasil. "É visível que você gosta do Brasil", engana-se. "De que gosta?" É uma pergunta que me faz reflectir. "Gosto do povo". É verdade. É estranho mas é verdade. São maioritariamente (há excepções, claro) mentirosos, preguiçosos, desonestos e pedinchões, mas são adoráveis. "E da cultura - de Jorge Amado, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Jobim, Vinicius, João Gilberto; gosto da paisagem (quando não está coberta de lixo) e do clima; da capacidade de improvisação das pessoas, do seu sentido de humor, do seu voluntarismo". Hesito um pouco e concluo "o brasileiro é um povo fundamentalmente humano. Tem todas as qualidades e todos os defeitos que fazem do homem homem". Talvez seja um bocadinho paternalista, esta visão; mas se o é S. não o diz.

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Preciso de emagrecer, é certo. Mas vou ao mercado comprar 100 gr de castanha de caju (três reais. Se já tiverem visto preço pior estão como eu) e o rapaz pisca-me o olho (sem quaisquer intenções, apresso-me a precisar), põe 140 gr no saco e faz-me sinal "schiu, não digas a ninguém"; pouco depois vou comprar uma patinha de caranguejo à Rosa Crioula (não é a Rosa do mercado, é outra, que tem uma banca no passeio onde vende comida). Pago uma, volto para a segunda - são simples e irrecusavelmente deliciosas - e ela oferece-me a terceira; venho jantar à pousada e Valquíria, a cozinheira que às vezes serve à mesa, e quando serve não há massas para ninguém vai para a cozinha de propósito fazer-me um spaghetti Carbonara "porção individual" que é para aí o dobro da porção "duas pessoas".

Não sei como fazer para emagrecer nestas condições. Não vou cá ficar tempo suficiente para comprar uma bicicleta, não posso evitar esta gente, e já ando mais de uma hora por dia a um passo que pretendo rápido (e nem sempre é, eu sei). O mais fácil está feito - reduzi drasticamente o consumo de álcool -; agora há que reduzir o resto. A verdade é que ando a comer em restaurantes há mais de sete meses (com excepção da viagem da Colômbia e mais duas ou três pequenas travessias que fiz) e estou bastante farto.

Isto dito não consigo impedir-me de me lembrar das senhoras do mercado do Marin, que gostavam muito de mim e me enchiam o prato de tal maneira que tinha de o ir esvaziar no lixo às escondidas...

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Sérgio não apareceu no estaleiro. Está atolado (parece-me o termo correcto) no 43 que pôs na água há uma semana. Levantar B. para o seco está a transformar-se num desafio tão grande como foi em Parnaíba, com a agravante de ser um desafio mais agradável: é como o big game fishing, em que se pescam peixes de trezentos quilos com linhas cuja resistência não excede os cinquenta. Aqui trata-se de pôr B. na paisagem mental de Sérgio sem que ele se assuste e nos mande embora, ou nos deixe para as calendas gregas. Assusta-me muito, esta transformação de uma coisa que parecia simples e linear num desafio.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

São Luís, Maranhão, Brasil, 13-04-2012

De regresso à pousada apanho um táxi: está a chover e, se bem a fase demencial da coisa já tenha passado ainda é demasiado para ir de mota. O taxista queixa-se de que já não chove como antigamente. "Aqui, os meses em que chove mais são Março e Abril" explica. "Dantes chovia directo. Agora veja, passou três dias sem chover". Não é bem verdade, tem chovido todos os dias, ou quase; mas não vale a pena combater a ideia de que o clima está a mudar e muito menos a de que dantes é que era.

Queixar é o verbo certo: o Nordeste (suponho que grande parte do Brasil) é essencialmente rural. As pessoas, apesar de viverem numa cidade que fica inundada mal caem dois pingos de água - enfim, talvez sejam precisos mais do que dois pingos - gostam da chuva, e olham para mim como se fosse um extraterrestre quando lhes digo que odeio chuva. É como se lhes dissesse que o Brasil não é o melhor país do mundo.

Hoje disse-o a uma miúda numa agência de viagens. Ela é que começou: perguntou-me se "estava gostando da cidade" e eu disse "mais ou menos". "Mais ou menos?" O olhar foi eloquente. "O que está faltando?" "Ruas limpas, prédios em boas condições, bom cheiro nas ruas, menos miséria..." Parei aqui. Às vezes pergunto-me de onde vem este estranho amor dos brasileiros pelo seu país. Ou será o nosso desamor pelo nosso que é estranho?

Não sei. Penso muitas vezes que as coisas mais desagradáveis no Brasil são as mesmas do que em Portugal, mas ampliadas à escala do país: os prédios em ruínas, a sujidade nas ruas, a burocacia. Portugal já foi pior, já foi mais parecido com isto, é certo. Ainda me lembro de quando ir a um banco significava perder uma hora ou duas. E de quando as pessoas cuspiam orgulhosamente na rua, como se estivessem a ejacular.

Na verdade devíamos comparar-nos ao Brasil. A nossa auto-estima aumentaria imediatamente. O erro é querermos ser como a Europa.

À tarde voltei ao Shopping São Luís, o maior. Não há um jornal, um que seja, em inglês, francês - nem em espanhol, sequer, a língua de todos os países que rodeiam este. Hoje de manhã apercebi-me de que os dois principais quotidianos têm uma página, uma cada um, dedicada ao "Mundo"; fui beber uma bica, bastante boa por sinal, e comer uma trufa de chocolate preto. Ando com os níveis de serotonina em baixo, é melhor preocupar-me com o que os pode fazer subir.

Por falar em mundo, hoje vou ouvir jazz. Espero. A notícia no jornal não era muito clara, mas eu imagino que seja para não assustar potenciais clientes. Pus o meu polo roxo de cerimónia e umas calças compridas. As ocasiões são para se celebrar condignamente.

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Tecnicamente, isto devia passar para dia 14. Não passa.

Não foi jazz. Foi uma espécie de easy listening, com um sax desinteressante mas talentuoso, não sei se isto faz sentido. A coisa começou bem quando vi a lista: os preços eram inferiores o que eu pensava; e quando vi o sítio, muito bonito. O resto foi mal: a banda de abertura era uma bimbalhada indescriptível, a lista pouco apetitosa.

Mas a verdade é que por vezes faz-se - sozinha - uma carapaça à nossa volta que nos protege do mundo exterior (e o mundo interior se revela uma inestimável contribuição para a nossa felicidade, mas isso é outra história).

A Lagoa da Jansen é uma pequena lagoa, natural, que fica no meio da península da Ponta d'Areia, a zona chique de São Luís. Já me tinham dito, quando fui ver um dos apartamentos que visitei, que não muito longe havia uma zona de bares e restaurantes.

Há. Mais restaurantes do que bares, à primeira vista. Todos eles mais ou menos bonitos, atraentes, italianos, japoneses. De vez em quando chegam-me ligeiros relentos, muito ligeiros, de esgoto, alternados com cheiro a peixe frito do restaurante ao lado. Mas o sítio é bonito. Ao fundo vêem-se as luzes da cidade, os arranha-céus, e nas ruas um parque automóvel de luxo. Tudo isto no meio de uma favela. Pequena, creio.

Mesmo assim a diferença com o Reviver é siderante. Parece que mudei de planeta. As raparigas são mais bonitas - toda a gente é mais bonita - o chinfrim muito menor, a comida mais variada, e as bebidas - até Alexander têm. Fraco, mas têm.

Deixei uma gorjeta grande no restaurante - enfim, grande aqui, onde os empregados não estão habituados a receber gorjetas. Em Antigua teria sido considerado um forreta, e nos Estados Unidos corrido a pontapé -. Mas a rapariga apreciou, claramente. Quando não se tem a sorte de nascer jovem deus, mais vale comprar (a divindade; a juventude não se pode, é inata).

Voltei para o Reviver, fiz uma grande parte do trajecto a pé, apanhei um táxi, o chauffeur  avisou-me que ali até de dia há assaltos (é onde passo quase todas as manhãs quando vou andar), e acabei no Bar Odeon, que doravante vai ser a minha casa. Mas é um sítio demasiado complexo para ser descrito agora. Fica para amanhã.

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Não sei se foi a trufa, as bicas, o facto de em breve a minha filha estar aqui ou, pouco depois, eu perto de ti. Talvez seja, mais simplesmente, estar fora do Reviver, ter mudado de galáxia ou de ecossistema.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Gustavia, Saint Barthélemy, 12-04-2012

O armador apostou com o mordomo: «se o cálice tiver mais de 50 mililitros de brandy, vais dar uma volta ao barco a nado [na marina de Marigot, onde temos descarregado os tanques da água suja, porque a máquina de tratamento não estava a funcionar]; se tiver os 50, vou eu.» Está toda a gente a torcer já se sabe por quê, mas quem perde é o mordomo. M. é simpático, competente e fala um espanhol perfeito por ter vivido quatro anos em Marbelha. Espero que saiba nadar bem.

É uma presunção não escrever num diário por receio de que os outros não achem os nossos dias interessantes. Como tudo na vida, escrever um diário devia ser um exercício de liberdade individual (se bem que ainda estou para saber que espécie de liberdade é uma liberdade colectiva, se os todos são feitos de partes e as partes de todos) e partilhá-lo apenas um capricho. A verdade é que não tenho escrito porque não me apetece e não acho os meus dias interessantes; projecto isto nos outros, voilà a presunção: que escriturário do Cacém não preferia trabalhar num barco nas Caraíbas?

O armador e a esposa devem estar satisfeitíssimos: temos vista da popa para uma Vilebrequin, uma Vuitton e uma Versace. Por falar em vês, passei a tarde a limpar vomitado do miúdo de dois anos, que enjoou no caminho. Estávamos fundeados no mesmo lugar onde estivemos com o outro grupo, uma parte de St. Barths que nem sequer tem nome no mapa, mas já adivinhávamos que não iriam querer estar naquele lugar. As vagas são enormes e o barco balança que se farta. É um sofrimento limpar e fazer camas nessas condições -- faz-me lembrar o anterior chef, que dizia que não gostava de barcos à vela porque não conseguia trabalhar num ângulo de 75 graus --, e imagino que usufruir do barco também não seja agradável de todo. Viemos para a doca e eu adorei o lugar. Pitoresco e glamoroso, chamam-lhe St. Tropez das Caraíbas. Segundo o capitão, muitos donos de lojas trabalham aqui até Maio e vão para St. Tropez em Junho; S. até já aqui viu à venda t-shirts a dizer "St. Tropez". Infelizmente, é quase certo que não poderei ir a terra por minha conta. Trabalhar, ou pelo menos estar disponível para isso, 16 horas por dia não é, já aqui o escrevi, a melhor maneira de conhecer um lugar.

O ponto alto da minha estadia em Marigot terá sido, talvez, a terça-feira de manhã, quando saía com o capitão para as compras -- íamos comprar camarão e voltámos ao barco com tudo menos camarão. O Dione Sky estava atracado junto a nós e ouvi chamarem o meu nome. Quando percebi que era uma das minhas amigas S. delirei. Ela correu literalmente o convés inteiro para me vir abraçar. O que eu  precisava daquele abraço e de saber que ela estava bem, feliz. Está. Bronzeada, até mergulha com os hóspedes. Nem todos os megaiates são prisões e nem todas as prisões são más: o armador vai levar-nos a almoçar amanhã. Alguém tem de ficar a bordo e eu voluntariei-me. O capitão respondeu a isso com um «pára de ser tão Tatiana». Resigno-me. Até os rapazes me dizem que, de dia para dia, me torno mais infantil. Avaliam agora a minha idade mental nos 13 anos, porque me rio de conversas de peidos. Dos peidos ainda não me consigo rir -- acreditem: se os cheirassem também não conseguiriam.

terça-feira, 10 de abril de 2012

São Luís, Maranhão, Brasil, 10-04-2012

Daqui a um mês, no máximo, vou-me embora. Terei passado três meses certos no Brasil: um em Parnaíba e dois em São Luís. E terei feito uma das viagens da minha vida, quatro dias a reboque de uma embarcação de pesca que só por si justificam os outros dias todos.

B. está em boas mãos, o mastro em breve estará cá, um plano de tabalhos delineado e em curso: pouco mais haverá a fazer que valha estar longe de ti, ganhar pouco e viver num país do qual não gosto por aí além.

Penso que quem gosta deste país não trabalha aqui; vem cá de férias. Gostaria de ouvir as opiniões de quem simultaneamente trabalha e gosta - sabendo que o sul é diferente do Nordeste e que se calhar eu adoraria São Paulo ou Porto Alegre. Não sei.

Salvo raríssimas excepções - os barcos de Sérgio são uma delas - tudo aqui oscila entre o tosco, o rasca e o chunga. E o que está fora dessas categorias é importado e custa o dobro do que custa noutro lado qualquer. A falta de cultura é lancinante. "Para um maranhense o mundo exterior não existe", dizia-me I. no domingo. "Só existe o que ele conhece" (isto a propósito da minha incredibilidade quando me falaram de brasileiros que tinham estado em Antigua e não tinham gostado da comida. Faltaram-lhes as mesas "promocionais" em plástico de  cores garridas, decerto; e o cheiro a mijo, ubíquo; e o lixo nas ruas, os gatos escanzelados, as escarradelas em tudo quanto é sítio - um dos recepcionistas da Portas da Amazónia cospe para o caixote do lixo enquanto fala com os clientes, por exemplo - ).

Recentemente H., outro recepcionista, pediu-me ajuda para lhe resolver um problema de percentagens. Comecei por tentar explicar-lhe o que era uma percentagem, mas não sou um bom professor e não consegui. Ensinei-o a fazer uma regra de três simples, disse-lhe onde pôr o x e o cem, parece-me tudo em ordem. Ontem pediu-me de novo ajuda. Está a fazer um pedido de financiamento para um projecto de 132 mil reais - qualquer coisa como 60 mil euros - e não sabe, não consegue perceber, o que é uma percentagem. M., presidente de um organismo de captação de eventos, não sabia o que lusofonia significa.

Nada disto seria muito grave se o Brasil não fosse o que é: um país que podia ser um dos mais ricos do mundo, com pessoas cultíssimas - S. dizia-me que a psiquiatria infantil aqui está anos-luz à frente da portuguesa -, sexta potência económica do planeta, um país importante cultural, económica, socialmente.

Um país exasperante, como diz Gilles Lapouge no seu Dictionnaire Amoureux du Brésil porque no fundo no fundo é impossível não se gostar dele, do sorriso permanente na cara das pessoas, da simpatia generalizada, dos prodígios de creatividade, do sentido de humor, da sensualidade inexcedível (e por vezes caricata, é certo) deste povo.

Trabalhar no Brasil é um interminável exercício de paciência e resistência à frustração. Qualidades de que eu sou notória e infelizmente pouco dotado.

B. era uma porta que tinha ficado aberta. Em breve estará fechada. Ou melhor: já está. Só falta fechá-la, a parte menos importante.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

São Luís, Maranhão, Brasil, 09-04-2012

Einstein inventou o espaço-tempo; alguém devia inventar o dinheiro-tempo: a perene relação que há entre a presença daquele e o acelerar deste; ou ao contrário entre a ausência de um e a paralisia do outro. A pousada é bonita, felizmente; mas não deixa de ser uma prisão. E não há prisões bonitas. Enquanto não chegar dinheiro a vida vai ser isto: um longo passeio de manhã, uma longa sesta à tarde e um interminável desespero à noite. Dizer que estou farto não exprime senão uma pequena parte da verdade (deve haver outros adjectivos, mas agora não me ocorrem).

Felizmente a minha filha, essa ilha, vem cá daqui a uma semana ou duas.

Hoje mudei de destino: não fui à AVEN. Em vez de virar à esquerda virei à direita e fui ao Shopping Tropical. No caminho passei pela Cave au Vin, onde C. tinha comprado as garrafas de Côtes du Rhône que bebemos a bordo do catamaran dele. Oitenta e quatro reais cada uma, quase quarenta euros é um exagero em qualquer parte do mundo. Aqui é obsceno. A loja tem tudo aquilo de que um novo-rico que sabe ler precisa: Pomerol, Moët et Chandon, etc. Não tem, infelizmente um catálogo - nem em linha nem impresso. Quem quiser lá ir comprar vinho tem de lá ir.

Os preços são aterradores, o vinho está guardado de pé, o serviço limita-se grosso modo a meia dúzia de meninas que sabem onde estão os vinhos portugueses, chilenos e franceses. E sabem - pelo menos uma delas sabe - explicar-me que um Quinta de Cabriz Grande Reserva custa para cima de cem euros, Allah u Aqbar. Não vi o ano, deve ser de antes da fundação.

Ao jantar falo com dois tipos que tenho visto ultimamente; "ou são pedófilos ou são marinheiros", pensei. São marinheiros. Trabalham numa draga que está parada há três semanas por causa de um problema de bomba de água e de papéis. Já não estão desesperados - de seis em seis semanas têm duas de férias, e só esperam o momento de ir um para a Bélgica, outro para a Croácia, as terras deles. Conheço a raça: débardeurs, barbas por fazer, dinheiro a mais para o aspecto. É uma grande empresa belga de dragagens - terá dinheiro para isso e  muito mais.

Já eu fico a saber depois que me vou embora em breve. Uma boa notícia, finalmente. Falta saber quando, mas não deve ser muito mais do que um mês. Talvez menos. Allah u Aqbar, inch'Allah

domingo, 8 de abril de 2012

São Luís, Maranhão, Brasil, 08-04-2012

O dia começou bem, com um voto simpático de Boa Páscoa; mas os auspícios não eram bons: um domingo de Páscoa sozinho e sem dinheiro, nuvens a acinzentar-se. Nada entusiasmante.

Fui passear: andar é uma forma simpática, acolhedora e fácil de passar o tempo; e a melhor de conhecer uma cidade. Às nove e um quarto da manhã pus-me a caminho da AVEN (o E é de Esporte: Associação de Vela e Esportes Náuticos [do Maranhão]).

O BV43 que Sérgio pôs ontem na água já lá estava - o problema no motor de estibordo ficou resolvido. Visitei o barco: simples, luminoso, espaçoso. Um barco de marinheiro, infelizmente para alguém que vai fazer dele uma residência secundária - plasma enorme, ar condicionado, leitor de DVD. Há pessoas assim, precisam de entretenimento no mar, provavelmente porque passam a vida em terra, nunca estão realmente no mar. E quando estão não o vêem.

De um outro catamaran alguém chamou Sérgio - a maré estava baixa, os barcos estão todos em seco, mas um grupo almoçava e chamou-nos "Sérgio, anda cá, rapaiz, e traiz o teu amigo".

Estavam a comer sardinhas assadas - secas, grelhadas de mais, mas foram-me direitas ao coração. E ainda mais direito aquilo tudo foi ao coração quando o dono do barco abriu uma garrafa de Côtes du Rhône, à temperatura ambiente e tudo. Foram sardinhas (que eles comem envolvidas em farofa), duas garrafas de vinho e um grandioso momento de conversa. Dali fomos comer caranguejo para a praia: F., um professor universitário que tem o hábito de casar com as alunas (vai na terceira), J., a dita aluna, doutoranda de sociologia em Paris (ninguém é perfeito), I., mulher de Sérgio e eu.

Nada mal, para um domingo pouco auspicioso. Só choveu à noite, já eu estava na pousada. Finalmente o Brasil tal como o imaginamos: alegre, hospitaleiro, amical. Bom.

Ficou combinado que de vez em quando vou cozinhar, nas reuniões de quarta-feira. Preciso realmente de comprar uma bicicleta. 

sexta-feira, 6 de abril de 2012

São Luís, Maranhão, Brasil, 06-04-2012

Passeio pelo Centro Histórico de São Luís. Não é difícil ver a beleza por detrás destes edíficios degradados, do mau cheiro das ruas - dos maus-cheiros, há dois: o conjuntural (ontem foi véspera de feriado) e o estrutural (o centro de São Luís cheira permanentemente a esgoto) - da fealdade que a cobre como a diáfana fantasia a verdade.

A comparação com África é inevitável; as razões são as mesmas: um modelo económico feito para beneficiar as elites. Os efeitos iguais: uma economia que não sabe adaptar-se e renovar-se, desigualdades sociais lancinantes, discursos políticos ocos, irrealistas, como se os políticos vivessem noutro planeta.

Vivem, é verdade.

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Afinal o barco de J. não é um Garcia, mas um Metalu. Um irmão maior do Flot 18 e tão bom como ele. Vende-se hoje, vinte e muitos anos depois da construção, ao mesmo preço de novo, descontando a inflação. É lindo, forte, navega bem - grosso modo o equivalente náutico de uma jovem senhora bonita, inteligente e talentosa.

J. escreve e compõe música. Pediu-me para lhe rever uma canção que escreveu em português. Achei o texto e a melodia muito bonitos, canção francesa com toques de samba, alegre e densa. O tema é a saudade, e pedi-lha para tu a cantares. Disse-me que a ia registar primeiro, o que compreendo. Contou-me que a estava a ensaiar num táxi que o levava para bordo em Salvador logo depois de tê-la composto e se surpreendeu ao ouvir o motorista assobiá-la. "Não deve ser má de todo, para que um motorita de táxi a retenha tão depressa".

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Estou há dois dias praticamente fechado na Pousada por falta de dinheiro. "Não deve haver cidade no mundo onde isto não me tenha acontecido", penso. E penso nos passeios de autocarro ou a pé que dava em Paris para passar o tempo entre duas reuniões, nas contas que tantas vezes fiz em Londres, na semana que passei fechado no hotel em Salvador; penso nos horríveis momentos que vivi em Lisboa, intermináveis, na viagem de regresso de Buenos Aires com cinco dólares no bolso, em Maputo... O único sítio onde me sinto verdadeiramente livre é no mar: nem chaves, nem dinheiro, nem telefone. É para onde preciso de voltar, e depressa.

Tinha previsto ficar dois dias em Veneza, mas acabei por passar uma semana. Foi em 77, há mais de trinta anos. Para compensar o custo extra passei três dias a comer pizze, coisa de que nunca gostei particularmente (salvo raras e honrosas excepções, como a do Road Runner's, em Falmouth Harbour). Agora como no meu quarto o resto da pizza da véspera, fria, uma coisa que nem quente é particularmente boa. Fria porque quero, note-se: podia ir aquecê-la ao apartamento. Mas a qualidade não justifica o esforço. Depois de Veneza passei anos sem tocar numa. Pergunto-me quantas vidas passarei, depois disto.

A pizza é a maior aldrabice alimentar que existe. Custa-me perceber como é que pessoas inteligentes dão por elas aquilo que as pizzerie pedem. Deve ser a caloria mais cara do mercado, a que exige menos esforço e menos talento.

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Só há uma coisa verdadeiramente boa nisto: redescobrir a capacidade e o prazer do sono. Dormir é bom; e quando se sonha ainda melhor. É como ir ao teatro de graça e ainda ser convidado para a peça.

Hoje o calvário da pizza acaba. A senhora que cozinha as massas volta ao trabalho. Não há mal que sempre dure...

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"...for discipline is not ceremonious in merchant ships, where the sense of hierarchy is weak, and where all feel themselves equal before the unconcerned immensity of the sea and the exacting appeal of the work". Ler Conrad devia ser obrigatório em algumas escolas.

"The passage had begun; and the ship, a fragment detached from the earth, went on lonely and swift like a small planet. ... A great circular solitude moved with her, ever changing and ever the same, always monotonous and always imposing".

"The true peace of God begins at any spot a thousand miles from the nearest land".

quarta-feira, 4 de abril de 2012

São Luis, Maranhão, Brasil, 04-04-2012

Pouco a pouco o meu ecossistema vai-se construindo. Já tem fronteiras, alguns habitantes - o Raimundo do Sanzala, a Rosa do Tia Amélia - percursos e rituais. Se fosse turista, por exemplo, iria beber a minha cerveja de fim do dia ao Antigamente (procurei o link, mas aquilo pertence a um francês e não tem um site). O restaurante é muito bonito e está bem situado, na esquina mais bonita do Reviver (designação algo patética para uma parte do centro histórico que foi recuperada a fim de servir de isco para a classificação de Património da Humanidade). Mas não sou. Prefiro o mercado, o sorriso da Rosa, a ideia de que sou parte daqui, não a de que estou aqui - apesar de ser parte daqui ser, invariavelmente, estar aqui, mas isso é uma coisa que não posso mudar; não sei sequer se quero.

Ontem fui ao concerto do Baloji et l'Orchestre du Katumba. Não gosto muito de hip hop, mas gostei do concerto, da energia do jovem cantor, da excelência do guitarrista (que toca com Franco e com Sam Mangwana, ce n'est pas n'importe quoi) e do baixo. Estava com J., um francês que conheci no cais da AVEN. Navega sozinho há seis anos, mas não se define como um marinheiro. Nunca tinha pegado num barco antes, de resto: navegou em tripulação de La Rochelle a Vigo quando comprou o barco (se não me engano, um Garcia). É encenador de espectáculos, de grandes projectos - trabalhou um ano em São Petersburgo, por exemplo, para os trezentos anos da cidade -. Quando chegou a Vigo a tripulação desembarcou, como previsto, e ele continuou. Trabalhou com uma ONG chamada Voiles sans Frontières, ou coisa que o valha, no Senegal; com outra, espanhola, em Cabo Verde; depois atravessou e veio para o Brasil. Daqui vai para a Guiana, e em seguida deixar o barco num lado qualquer para ir a França passar dois ou três meses.

J. é um apreciador de vinhos, e acredita que o nosso sistema não funciona porque a economia deixou de pôr o "homem no centro". É daquelas fórmulas em que os franceses são mestres, bonitas e vazias. Conversamos sobre isso, sobre o "sistema", sobre a ajuda humanitária e a "solidária" - aparentemente já não se deve dizer ajuda ao desenvolvimento, parece mal - e acabamos a beber uma caipirinha no Raimundo.

Não sei se o vou voltar a ver. Espero que sim. Não porque tenha grandes instintos tribais - não tenho - mas porque gosto de pessoas que aliam inteligência, sucesso, humildade, humor, distância, coragem e uma série de coisas mais cujo nome não recordo agora.

AVEN significa Associação de Vela e qualquer coisa Náutica [do Maranhão]. Fisicamente consiste numa pequena barraca sobre palafitas com um pontão de vinte metros na margem sul do Igarapê Ana Jansen, uma zona da cidade chamada Ponta da Areia, o quarteirão chique e caro da cidade.

Sérgio tem ali a sua casa, a cem metros, uma vivenda de um andar numa zona de arranha-céus. Comprou um lote quando ninguém queria aquilo, ninguém queria lá viver. Hoje é a zona mais cara de São Luís. A AVEN foi construída sem qualquer ajuda de qualquer poder público, diz-me Sérgio com um certo, e mais do que justificado orgulho. "Um dava trinta reais, o outro oitenta e fomos fazendo isto, uma madeira depois da outra", é como Sérgio resume a coisa. Imagino que tenha sido mais complexo e difícil, mas não é pessoa para perder muito tempo com dificuldades. Vou fazer-me sócio: também não gosto por aí além de dificuldades, sobretudo as que já passaram.

Ao lado do estaleiro de Sérgio há um Estaleiro Escola. Hoje fui lá a uma reunião com o director, por causa do seminário. Sérgio não gosta muito dele, diz que aquilo é um "elefante branco", que não produz nada de jeito, etc. A julgar pela "reunião" de hoje tem decerto razão. Passo os pormenores, não interessam; mas serviu para confirmar que quem vive à mama do estado é igual em todo o mundo. Não me cheira que tenha muito sucesso - não sei sequer se verdadeiramente o desejo. Uma injecção de duas horas sobre os méritos do senhor à frente daquela meritória instituição fariam vacilar o mais determinado dos determinados.

É isto, um ecossistema, não é? O meu até já tem parasitas, e plantas carnívoras.

terça-feira, 3 de abril de 2012

São Luís, Maranhão, Brasil, 02-04-2012

Basta chover um bocadinho (um bocadinho em unidades de tempo, claro) para que as ruas de São Luís fiquem inundadas. É compreensível, numa cidade onde raramente chove torrencialmente (isto é, raramente chove torrencialmente mais do que uma ou duas vezes por dia). Porém hoje descobri uma consequência agradável da chuva: os autocarros - pelo menos aquele onde eu estava - andam mais devagar.

Andar de autocarro em São Luís é uma experiência especial devido à desconjuntante mistura de alta velocidade, ruas num estado lastimável, veículos velhos, desconfortáveis e quase sempre a abarrotar. Mas caíu um aguaceiro durante o dia (normalmente vêm mais tarde) e o homem abrandou bastante, seja Deus louvado. O autocarro vinha vazio e de repente a experiência ficou quase agradável; prazer esse que durou até a visibilidade regressar, dez minutos depois.

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Na sexta-feira João, o senhor de "ascendência turca" que preside a mais organismos do que eu tenho camisas ficou interessado na minha experiência em turismo náutico, e marcou uma reunião com a senhora M., presidente de um outro organismo (não sei quantos há; devem ser muitos). Hoje fui à reunião e saí de lá com a agradável incumbência de organizar um seminário sobre náutica de recreio em São Luis, lá mais para o verão.

Durante a reunião mostrei à senhora M. um brevíssimo excerto da minha intervenção no seminário Mares da Lusofonia. Ela observa com atenção e a dada altura pergunta-me "o que é lusofonia?". Primeiro pensei que estava a ironizar, ou a fazer humor, mas não estava.

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Sou um homem de hábitos, coisa que herdei do meu Pai. Ele conseguiu ir ao mesmo barbeiro mais de quarenta anos, sempre que estava em Lisboa ia lá; até que o barbeiro morreu, ou Lisboa ficou muito longe, não sei. Eu sou fiel aos rituais (sou fiel a tudo), mas os meus raramente duram tanto tempo. Para mim o gozo consiste em criá-los, mais do que em mantê-los.

A Casa das Tulhas, ou Mercado da Praia Grande, é uma construção quadrada (ocupa todo um quarteirão) cujo pátio interior é ocupado por outra construção, essa circular. A maior parte dos stands (boxes) vendem produtos regionais: aguardentes, castanha de caju, camarões. Há uma livraria - onde comprei um livro chamado O Monstro Souza, obra seminal sobre São Luís e imprescindível para quem queira compreender a cidade (é um livro imprescindível, ponto; a menos que não queiram de todo perder a vontade de comer cachorros quentes) -; a box do homem do Corinthians, um clube de futebol; a do Nego, onde vou beber a minha pinga depois do almoço. E agora há também a esplanada da Tia Amélia, mãe da Tia Rosa, que me serve com carinho e ternura a cerveja ou a carne do sol.

Rosa é uma senhora loira, muito pequena e magra, pouco mais nova do que eu. Felizmente está sempre vestida com uma base preta e coisas muito garridas por cima, se não seria transparente e ver-se-ia através dela, de tão magra. É o meu Skullduggery em São Luís - os rituais são para se manter, mesmo que mudemos de nome, língua, cor e forma, de país.

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Hoje conheci uma banda de música congolesa. Está na Portas da Amazónia, local habitualmente escolhido por artistas de passagem em São Luís. Chama-se Baloji (é nome do leader) e vai tocar amanhã num dos teatros da cidade. Vejam isto e digam-me se não é uma simples maravilha: a classe, a roupa, a beleza, uma música política inteligente e dançável.



Zaire, Congo, whatever for ever!

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Marigot, Saint Martin, 02-04-2012

Este post é curto como a minha má disposição — prometo não a fazer durar muito.

Ontem dei um passeio por Saint Martin num Toyota Yaris semi-automático alugado que me fez confirmar o quanto gostei de Antígua. Por um lado, Antígua não é uma ilha linda cravejada de cartazes publicitários e ofertas comerciais visualmente poluentes, é só uma ilha linda (embora não sumptuosamente linda); por outro, passei lá um mês e meio sem ninguém me dizer para não sair à noite sozinha, com a porta de casa aberta e tudo o que tinha lá dentro, abandonando muitas vezes computadores, telemóveis e máquinas fotográficas em mesas de cafés por mais de 10 minutos sem que ninguém lhes tocasse.

Parei, às três da tarde, num sítio bonito chamado Baie Lucas, uma baía com várias ilhas em frente, até às quais é possível caminhar com a água pelos joelhos. Saí do carro meio contrariada — estava a adorar conduzi-lo, mas achei que a paisagem merecia umas fotos —, que tranquei, e demorei-me dez minutos na praia. Quando voltei a chave não entrava na porta, mas esta estava aberta. A minha mochila de estimação tinha desaparecido, com uma carta de condução internacional, um cartão de cidadão, um cartão multibanco e um de crédito, 52 dólares e 26 euros, o cartão para entrar na marina, as chaves do barco, um telemóvel novo, um bikini, um bronzeador e uma coisa muito querida que a minha mãe me deu antes de entrar no avião.

Chorei de raiva e de fome — ia almoçar de seguida —, voltei ao último sítio onde tinha parado para me certificar de não ter sido eu a perder as coisas (nem me ocorreu a fechadura forçada, as duas, aliás), e depois voltei ao barco para entregar o carro, cujo estrago não pude ainda pagar, e cancelar os cartões.

Quando contei a história a dois conterrâneos (o meu pai e o meu namorado), deram-me a resposta que menos queria ouvir: não devia ter deixado a mochila à vista. As pessoas trabalham, ganham dinheiro para pagar as suas coisas e são elas que são culpadas de serem roubadas. Lei de talião para estes delitos, ou pena de morte: se se executassem ladrões haveria decerto muito menos.

O dia, tão bonito — uma ilha é sempre uma ilha —, acabou prematuramente comigo a dormir para não me enervar. Recuperar documentos e, sobretudo, cartões multibanco quando vivo de porto em porto não será fácil.

Detesto Saint Martin.