Há um festival de teatro em São Luís e as pousadas do centro estão cheias. Tive que ir para uma um bocadinho para lá do sol posto (enfim, houve também um erro da minha parte, mas isso por agora é irrelevante. Um dia aprenderei a comprar guias das cidades onde vou, ou estou). A viagem de autocarro dura quase uma hora, de dia, e pouco menos à noite.
Foi desta que gostei: o autocarro enchia-se sistematicamente de jovens de livros escolares na mão, a sair de cursos post-laborais. Pensei em Raimundo, em conversas que tenho tido e onde o desejo de completar ou melhorar a formação é sempre mencionado.
A qualidade do ensino deve ser fraca, a julgar pelas perguntas que me fazem sobre a minha origem - italiano? Espanhol? aparecem muito mais do que português - mas apesar disso (ou talvez por causa disso) as pessoas querem evoluir. Ao longo do trajecto o autocarro encheu-se e esvaziou-se duas ou três vezes de bandos de jovens adultos a discutir cursos, aulas, professores e aquelas coisas todas que se discutem quando se sai de uma escola.
(Na última leva, a miúda que ficou ao meu lado falava em linguagem gestual com dois colegas da fila de trás; não faço a mais pequena ideia do teor da conversa, mas confirmei a minha atracção por línguas que não fazem barulho.)
Hoje passei o dia embrenhado em problemas de dinheiro e de pousadas. Ambos se resolveram, aquele bem este menos; mas enfim, nada do outro mundo. Amanhã recomeçam os problemas conhecidos: pôr B. em seco, encontrar maneira de cá pôr o mastro, encontrar um apartamento. Aqui é difícil: há muitos apartamentos para arrendar, aparentemente, mas ninguém os deixa por períodos curtos porque as grandes empresas os tomam ao ano, e pagam bem. Mas não será decerto impossível, é uma questão de tempo e de teimosia, duas coisas que andam sempre de mãos dadas.
Fui assistir - por acaso, é forçoso reconhecer - a uma palestra sobre cultura popular maranhense. Havia duas senhoras a falar - uma de oitenta e cinco anos (mas parecia mais nova) que representava a prática e outra dos seus sessenta que era a académica.
Percebi pouco do que diziam, uma e outra, porque o som estava mau. Mas aquilo era um café literário e foram servidos pastéis, sandes, sumos de frutas e mesmo um delicioso chocolate quente; à borla, de maneira metade do jantar veio logo dali. E ainda há quem diga que a cultura não dá de comer.
A média das idades dos presentes era alta, em consonância com as das oradoras. A audiência era visivelmente constituída pelos pesos pesados da cultura não-popular maranhense. Oitenta por cento estava ali para ser visto; os restantes vinte para ser visto pelos que queriam ser vistos. No fim resolvi fazer uma pergunta, mas não tive muito sucesso.
Fui sumariamente despachado com um "isso só Deus sabe" que até palmas levou da audiência. A pergunta era "quando se fala em cultura popular só se fala no passado, e às vezes, mais raramente, no presente. Como vê o futuro da cultura popular maranhense? Como pensa que vai evoluir?" Começaram por não perceber o português, tive de repetir devagarinho. Depois de um momento de concílio entre as duas a académica deu-me aquela resposta. Não me aborreci muito porque já antes de tomar a palavra a tinha integrado no leque de respostas possíveis.
Antes de mim um senhor fizera uma pergunta muito longa (daquelas de quem quer ser orador no lugar do orador) que desencadeou uma resposta de vinte e cinco minutos da senhra mais velha. Começou na bisavó dela e acabou, oitenta anos e vinte e cinco minutos depois, nela e no irmão. Infelizmente não percebi nem a pergunta nem a resposta. O meu "isso só Deus sabe" foi refrescantemente breve e sintético. A coisa acabou ali, de maneira fui beber uma cerveja à Dica e vim para a pousada.
Daqui a duas semanas há mais, e lá estarei, se não me esquecer. Os kibes e as patas de caranguejo panadas eram mesmo bons.
(Também vou tentar ver uma peça de Beckett, na tal semana de Teatro.)
Ah, já me esquecia: fui a um centro comercial e gostei de cada minuto que lá passei dentro (não cheguei a lamentar os que não passei, mas estive quase). Ando à procura de atacadores para os meus sapatos de camurça, de um produto para limpar a dita camurça (já era preciso antes de Parnaíba; agora, com os banhos de lama que por ali levaram, ainda é mais) e de umas lentes escuras para pôr nos óculos, por cima das lentes brancas. De tudo isto só encontrei o tal produto, mas não comprei porque era caro. Mesmo assim achei encorajador, porque ando à procura disto tudo (muito banal, reconheça-se) desde que cheguei a Fortaleza, e até agora tenho encontrado zero por cento da lista. Hoje essa percentagem subiu vertiginosamente - trinta e três por cento. Mais três meses e terei tudo.
Mas havia café, muito bom; cerveja à pressão, que já não via desde Fortaleza; e, sobretudo, encontrei uma antologia do Padre António Vieira, uma edição em português dos Penguin Classics. Quando penso que antigamente detestava centros comerciais... Havia lojas normais com pessoas e produtos normais, bem arrumadas, bem iluminadas, as coisas expostas e com os preços à vista, não cheirava mal, os empregados eram solícitos (enfim, mais ou menos; mas pelo menos muito mais do que nas lojas caóticas do centro, onde só não somos recebidos à pedrada porque eles têm medo de partir os vidros das montras).
A vida recomeça. Cada vez percebo menos como há pessoas que conseguem fazer duas semanas seguidas de férias.
Foi desta que gostei: o autocarro enchia-se sistematicamente de jovens de livros escolares na mão, a sair de cursos post-laborais. Pensei em Raimundo, em conversas que tenho tido e onde o desejo de completar ou melhorar a formação é sempre mencionado.
A qualidade do ensino deve ser fraca, a julgar pelas perguntas que me fazem sobre a minha origem - italiano? Espanhol? aparecem muito mais do que português - mas apesar disso (ou talvez por causa disso) as pessoas querem evoluir. Ao longo do trajecto o autocarro encheu-se e esvaziou-se duas ou três vezes de bandos de jovens adultos a discutir cursos, aulas, professores e aquelas coisas todas que se discutem quando se sai de uma escola.
(Na última leva, a miúda que ficou ao meu lado falava em linguagem gestual com dois colegas da fila de trás; não faço a mais pequena ideia do teor da conversa, mas confirmei a minha atracção por línguas que não fazem barulho.)
Hoje passei o dia embrenhado em problemas de dinheiro e de pousadas. Ambos se resolveram, aquele bem este menos; mas enfim, nada do outro mundo. Amanhã recomeçam os problemas conhecidos: pôr B. em seco, encontrar maneira de cá pôr o mastro, encontrar um apartamento. Aqui é difícil: há muitos apartamentos para arrendar, aparentemente, mas ninguém os deixa por períodos curtos porque as grandes empresas os tomam ao ano, e pagam bem. Mas não será decerto impossível, é uma questão de tempo e de teimosia, duas coisas que andam sempre de mãos dadas.
Fui assistir - por acaso, é forçoso reconhecer - a uma palestra sobre cultura popular maranhense. Havia duas senhoras a falar - uma de oitenta e cinco anos (mas parecia mais nova) que representava a prática e outra dos seus sessenta que era a académica.
Percebi pouco do que diziam, uma e outra, porque o som estava mau. Mas aquilo era um café literário e foram servidos pastéis, sandes, sumos de frutas e mesmo um delicioso chocolate quente; à borla, de maneira metade do jantar veio logo dali. E ainda há quem diga que a cultura não dá de comer.
A média das idades dos presentes era alta, em consonância com as das oradoras. A audiência era visivelmente constituída pelos pesos pesados da cultura não-popular maranhense. Oitenta por cento estava ali para ser visto; os restantes vinte para ser visto pelos que queriam ser vistos. No fim resolvi fazer uma pergunta, mas não tive muito sucesso.
Fui sumariamente despachado com um "isso só Deus sabe" que até palmas levou da audiência. A pergunta era "quando se fala em cultura popular só se fala no passado, e às vezes, mais raramente, no presente. Como vê o futuro da cultura popular maranhense? Como pensa que vai evoluir?" Começaram por não perceber o português, tive de repetir devagarinho. Depois de um momento de concílio entre as duas a académica deu-me aquela resposta. Não me aborreci muito porque já antes de tomar a palavra a tinha integrado no leque de respostas possíveis.
Antes de mim um senhor fizera uma pergunta muito longa (daquelas de quem quer ser orador no lugar do orador) que desencadeou uma resposta de vinte e cinco minutos da senhra mais velha. Começou na bisavó dela e acabou, oitenta anos e vinte e cinco minutos depois, nela e no irmão. Infelizmente não percebi nem a pergunta nem a resposta. O meu "isso só Deus sabe" foi refrescantemente breve e sintético. A coisa acabou ali, de maneira fui beber uma cerveja à Dica e vim para a pousada.
Daqui a duas semanas há mais, e lá estarei, se não me esquecer. Os kibes e as patas de caranguejo panadas eram mesmo bons.
(Também vou tentar ver uma peça de Beckett, na tal semana de Teatro.)
Ah, já me esquecia: fui a um centro comercial e gostei de cada minuto que lá passei dentro (não cheguei a lamentar os que não passei, mas estive quase). Ando à procura de atacadores para os meus sapatos de camurça, de um produto para limpar a dita camurça (já era preciso antes de Parnaíba; agora, com os banhos de lama que por ali levaram, ainda é mais) e de umas lentes escuras para pôr nos óculos, por cima das lentes brancas. De tudo isto só encontrei o tal produto, mas não comprei porque era caro. Mesmo assim achei encorajador, porque ando à procura disto tudo (muito banal, reconheça-se) desde que cheguei a Fortaleza, e até agora tenho encontrado zero por cento da lista. Hoje essa percentagem subiu vertiginosamente - trinta e três por cento. Mais três meses e terei tudo.
Mas havia café, muito bom; cerveja à pressão, que já não via desde Fortaleza; e, sobretudo, encontrei uma antologia do Padre António Vieira, uma edição em português dos Penguin Classics. Quando penso que antigamente detestava centros comerciais... Havia lojas normais com pessoas e produtos normais, bem arrumadas, bem iluminadas, as coisas expostas e com os preços à vista, não cheirava mal, os empregados eram solícitos (enfim, mais ou menos; mas pelo menos muito mais do que nas lojas caóticas do centro, onde só não somos recebidos à pedrada porque eles têm medo de partir os vidros das montras).
A vida recomeça. Cada vez percebo menos como há pessoas que conseguem fazer duas semanas seguidas de férias.
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