Afinal a mudança não foi tão imbecil como eu esperava. Estamos nós, desta vez, de proa virada para a ilhota — pode ser que nos fundamos a ela nas primeiras horas da manhã. A estibordo temos um braço de terra ao fim do qual se revela Green Island, tímida como todos os desejos — não passa de um desejo, já que perdi toda a expectativa de a ver. Quando saio para o convés já não tenho só terra misteriosa e mar, tenho terra misteriosa, terra clara e mar a perder de vista, em pelo menos três tons de azul. (A verdade é que continuamos em Nonsuch Bay, mas achei que a mudança de fundeadouro merecia ser celebrada com a mudança de título do post.)
Na sexta-feira "os patrões" vão para a Polónia e só voltam em Abril, mas até lá ainda temos uma espécie de charter de dez dias com a filha mais velha do armador e a respectiva família. Entretanto, partimos para St. Martin para abastecer. Estou ansiosa por saber se terei tempo de almoçar por lá num restaurante que o Luís me recomendou com as minhas três amigas (S. é a inicial de cada uma, é obra) que se mudaram para lá e poder, assim, escrever sobre um barco visto do mundo e não o contrário. Acho brilhante este género literário que o Luís inventou, um diário de bordo a bordo de si mesmo, ou seja, para o qual não é preciso estar, de facto, a bordo de nada.
Hoje o capitão voltou a mandar Ja. às compras, que encontrou a namorada do outro Ja. no Epicurian (o supermercado grande de Antígua). O desgraçado do outro Ja. está, como eu, no seu primeiro embarque, e deve ter-se sentido dilacerado ao receber um SMS da namorada a dizer «enquanto tu estás enclausurado no barco a fingir que trabalhas [outro-Ja. é maquinista, ou engineer, tem muito tempo livre quando tudo está bem, mas mata-se a trabalhar quando alguma coisa corre mal] eu encontrei o teu colega no supermercado». Se fosse comigo atirava-me à água, só em sinal de protesto contra a ironia divina — ontem à noite o capitão perguntou-me se eu queria ir às compras, e eu que estava morta para sair do barco recusei: foi dia de camas de lavado, seria impensável perder duas horas a espairecer no supermercado e no táxi do Pele.
Neste mundinho de 40 metros a minha única relação com o maravilhoso mês e meio que passei em Antígua é o rádio. Volta e meia estou na messe e ouço alguém pedir uma pizza ao Road Runners ou um lugar na marina de Jolly Harbour, onde aprendi o mais básico da vela com o capitão C., que me pagava 60 dólares por dia para navegar com ele e receber os clientes de day charter, na sua maioria canadianos hospedados em resorts aqui em Antígua. Era um trabalho maravilhoso, mas não era trabalho, e a calvinista que há em mim não aguentava ser paga por tanta satisfação — e não havia trabalho todos os dias, e o que havia nem me dava para pagar as despesas. Foi no veleiro de 44 pés do C. que aprendi que não há nada como sentir o motor de um barco à vela desligar-se e perceber que ele não é preciso para nada, que o vento e a física fazem quase tudo por nós.
No J. tenho o motor debaixo da almofada.
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