Não quero falhar dois dias seguidos, mas corro esse risco, se não conseguir publicar antes da (minha) meia-noite. Anteontem adormeci três vezes enquanto escrevia e ontem adormeci antes de começar. Hoje vem-me à memória uma canção do Rui Veloso que diz «Hoje eu não me recomendo». Hoje.
Almoço invariavelmente às duas, já com oito horas de trabalho somadas. Descanso uma hora e, ao longo da tarde, vou parando para um chá e um olho à Internet. Às sete ou oito, se tiver a roupa em dia, posso ir dormir. Hoje não. Concluo que o trabalho intelectual cansa mais do que este, mas este cansa muito, sobretudo porque não estou à vontade para fazer as coisas na ordem que me dá jeito. A regra inviolável nos meus afazeres diários é tentar não ser vista, ou ser vista o menos possível pelo armador e a mulher. Passo o dia a olhar para a CCTV entre vincos e nódoas acabadas de tirar para saber se já posso aspirar o salão, ou arrumar os brinquedos do menino de dois anos que parecem crescer em número e tamanho de dia para dia, ou guardar no armário da sala de jantar os guardanapos que acabei de engomar, ou fazer a cama dos "patrões" e limpar-lhes a retrete e o bidé (tenho inveja do bidé do camarote principal, é o único no barco e, suspeito, em Antígua).
Acho que tens razão: pelo menos enquanto não estivermos um com o outro podemos dirigir-nos algumas palavras em público, sem, no entanto, tornar isto numa declaração de amor -- como se não fosses tu o responsável pela felicidade que tenho conhecido, apesar das circunstâncias tão particulares que muitas vezes me dão vontade de te mandar à fava*. (Conhecer é a palavra certa para alguma coisa que se experimenta pela primeira vez.) Ainda assim, é uma injustiça responsabilizar-te por esta felicidade porque a) tu não és a pessoa que conheço que mais delira com responsabilidades; b) falo como se não tivesse tido tanta gente a tentar fazer-me feliz, e eu a recusar, como um miúdo envergonhado a fazer cerimónia quando lhe oferecem mais bolo. Já o disse noutro lugar: a tristeza vicia mais do que a felicidade. Talvez se eu estivesse em terra com as S. a beber copos e a dizer disparates, no Rasta Shack a ouvir a banda do B. ou a dormir uma sesta contigo no Reef Gardens a tristeza não me batesse à porta com esta violência.
É quase meia-noite e eu só quero saber se um dia vamos deitar-nos num convés e ver como o luar ilumina este chão de água e sal, e se uma noite nossa vai ser tão bonita quanto esta minha, e se nessa noite eu vou ter coragem, força, inteligência para não te dizer nada, nem sequer «amo-te», e partilhar contigo o silêncio do casco a cortar o chão, e o silêncio a entrar-nos pelas bocas adentro como se fosse ar, como se fosse vento.
*Private joke
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