domingo, 25 de março de 2012

Alcântara, Maranhão, Brasil, 25-03-2012

O veneno sai, finalmente. Estou no bar Sabores da Terra (“mas toda a gente conhece como Bar do Louro”) e apesar das cadeiras e mesas de plástico, da música execrável, dos fios eléctricos sinto-me bem, em harmonia. Penso num poema de Nuno Júdice de que gosto muito, “Comecei a fugir para dentro” e digo “comecei a fugir de dentro”.

A praça é bonita, simples; Louro é uma simpatia, o ambiente agradável: um ambiente de fim de domingo, calmo. Há qualquer coisa de patético e belo no jovem casal, ela em vestido de cerimónia, ele no que deve passar por “bem vestido”; sentados numa mesa isolada, iluminada por um spot fortíssimo, branco, sozinhos no meio da relva, isolados do mundo ali tão perto, como se estivessem num palco e ignorassem soberbamente a audiência.

Os lugares não são o que são; são o que somos e o que estamos, o que fazemos deles.

Às vezes o Brasil parece-me África, uma África envergonhada, escondida. Mas hoje surpreendo-me a comer alface sem pensar na cólera. Isto não é África. Ou já não é. África tem muita força, onde chega fica. Portugal que o diga.

......
Quando Tetéu apareceu à porta da pousada a primeira imagem que me ocorreu foi a de Jean Longo, uma história que já aqui contei. Mas a desproporção era tão grande que varri imediatamente a imagem da memória.

Estava a tentar conter-me para não ir ao estaleiro. "Antes das três não vai ser possível pôr o bote na água", dizia-me de cinco em cinco segundos. Estava a ver um Combate de Blogs (isto não se inventa) quando Tetéu chegou. "O barco está na água".

Há três dias que esperava este momento, e esperava fazer parte dele. Há coisas curiosas, não é?

Descemos o rio comigo a olhar para tudo menos para o rio. O leme que Pelé fizera não ia aguentar, saltava aos olhos; Chaguinha não sabia fazer leme (aqui dizem governar, como nós até há ainda bem pouco tempo, tão mais bonito); o casco de bombordo metia bastante água; o de estibordo estava seco. De qualquer forma era claro que íamos parar em Luís Correia e veríamos tudo isso.

Não parámos.

A bomba manual do casco de bombordo não funcionava, de maneira pus as duas eléctricas. Chaguinha governava bem, agora, mas o leme não ia aguentar; e Pelé ia muito depressa, era preciso dizer-lhe constantemente para reduzir a velocidade. [Não era Pelé, era o mestre, mas nessa altura ainda não o sabia.]

Estava vento e um pouco de mar de través; às vezes saltavam ambos para a vante do través. Já não me lembro de quando se partiu o leme pela primeira vez. Não é muito importante, de qualquer forma: antes de se partir definitivamente parámos três vezes, e por três vezes pensei que um povo com aquela capacidade de improvisação, dedicação e desenrascanço não precisa de planeamento para nada.

Tetéu, Chaguinha, Pelé deitavam-se à água fosse dia fosse noite, inventavam, improvisavam, melhoravam - até que deixou de haver remédio e fizémos um aileron fixo no lugar do leme. Chaguinha e eu pudémos dormir, finalmente.

Só fizemos um leme novo em Areinhas. Lá chegaremos.

......
Pelé era o chefe da expedição. Foi com ele que negociei o preço, que combinei tudo. Ao princípio parecia-me um choramingas, sempre a queixar-se do dinheiro que ia gastar, do que já tinha gasto, de tudo.

Tetéu é o seu imediato. Alto, bonitão, magro, forte como um touro, dar-se-lhe-ia a comunhão sem confissão.

Chaguinha é pequeno, rosto quadrado, sempre sorridente. Pega no leme às quatro da manhã e deixa-o às nove da noite, se for preciso; o que lhe falta em inteligência é compensado pela energia, simpatia, disponibilidade.

De Leo nada há a dizer: era transparente.

O mestre sorri muito. É pequeno e magro. Fala demais, intervem desadequadamente, é desagradável; e incompetente, mas isso só mais tarde.

......
Ainda não percebi se prefiro os dias cheios de problemas se aqueles, como hoje [20/03?], em que nada se passa, mortalmente aborrecidos.

Cala-te boca.

......
Pelé fala como se o mundo inteiro conspirasse para o fazer infeliz, e conseguisse. Gosta muito do seu pessoal, amor esse que manifesta dizendo-me constantemente "leve-os para o Caribe, Luís. Não tem de pagar passe. Eu dou-lhos de borla".

Refere-se a Tetéu e a Chaguinha, com quem vai para Fortaleza logo a seguir a este serviço reparar uma embarcação de passageiros que por lá ficou. Tetéu sabe fazer tudo, desde construção civil a electricidade, de pescar a reparar barcos, de fibra de vidro a mecânica, de improvisar lemes a cozinhar - é ele que cozinha todas, sem excepção todas as refeições da viagem.

Chaguinha vem comigo no B. Ri e governa. Cada vez que lhe pergunto se quer descansar diz que não. "Eu vou levando, obrigado. Gosto de governar".

A viagem durou quatro dias: saímos domingo às três da tarde de Parnaíba; nessa noite navegámos; na noite de segunda fundeámos no mar, à frente da barra da Travosa; terça dormimos na Areinha; quarta na ilha do Carrapatal, à saída da baía do Tubarão. Chegámos quinta; demos volta à manobra já passava das sete da noite.

Durante a viagem o Mestre queixou-se de lhe terem roubado cinquenta reais;  na Areinha dormiu amarrado ao trapiche: estava bêbedo e Tetéu amarrou-o para não cair. A Chaguinha desapareceram vinte reais, no dia seguinte. Eu tinha três mil no saco e proíbi mentalmente toda a gente de entrar a bordo (menos Pelé, que de qualquer forma não vinha, Tetéu e Chaguinha, claro). Só parámos na Areinha porque Pelé queria lá fazer um leme; se não, "não paramos perto de cachaça, Luís". Também contratou um prático, Bernardo.

Bernardo tem setenta e quatro anos. É pequeno, magro e seco. Olha para tudo e todos como se estivesse zangado com o mundo em geral, e não com cada um em particular. Assoa-se frequentemente, à camisa - não à baínha, como já vi muitas vezes, mas logo abaixo do colarinho -; uma vez de cada lado, sem dúvida para evitar assimetrias, tão desagradáveis à vista. Raramente participa nas conversas, mas quando o faz é interessante. Uma das sua profissões na juventude (não precisa até quando) foi vender maconha. Pelé contratou-o porque não tinha a certeza do trajecto na chegada a São Luís.

Quando lá chegamos descobrimos a) que fizemos um trajecto maior do que o necessário  (inicialmente Pelé queria vir por dentro da baía do Tubarão até à entrada de São Luís; teria sido melhor, mas Bernardo dissuadiu-o) e b) que Bernardo não entrava em São Luís pelo menos há vinte anos.

......
(Cont.)

Sem comentários:

Enviar um comentário