sábado, 31 de março de 2012

São Luís, Maranhão, Brasil, 31-03-2012

A pousada onde passei estes últimos dias era muito longe de tudo, inclusive da paragem de autocarro. Por vezes João, o dono, dava-me uma boleia, se calhava ir naquela direcção. Ontem ia para o centro, e tivemos tempo para falar mais do que as  fórmulas de quem vai estar juntos num carro cinco minutos.

João começa por me explicar que os brasileiros são preguiçosos. "Característica de indío e de negro", diz. "Eu sou diferente, porque sou de ascendência turca".

A Pousada da Praia é, se quisermos (e eu quero) ser generosos fracota. Nada de muito grave, nem suficiente para me fazer fugir a sete pés. Mas é fracota.

Foi portanto com uma certa supresa que ouvi João dizer que é o presidente da associação brasileira da indústria hoteleira, ou coisa que o valha; cargo esse que acumula com mais não sei quantas presidências, vice-presidências e outras posições em mais não sei quantos organismos, ligados ao turismo ou à vida empresarial em geral. "A pousada para mim acaba por ser um hobby", explica-me após desfiar os cargos todos. "Vê-se", respondo-lhe mentalmente. "Só é pena que não esteja escrito na descrição que vi na net e me fez vir para cá".

João é grande, seco, fala muito alto; tem pouco mais ou pouco menos de sessenta anos. Trabalhou vinte e cinco para a ONU, como militar. Pela quantidade clientes da pousada imagino que o hobby é pago pela reforma dos diferentes corpos de manutenção da paz que integrou.

Tem planos para passar dos actuais dezanove quartos para quarenta e um, "mas só depois de fazer o ponto da situação". Durante a semana fui o único ocupante; ontem apareceram uma senhoras que ocupam mais um quarto. Fazer "o ponto da situação" terá pelo menos a vantagem de ser uma operação rápida.

De maneira hoje vou para a minha querida Portas da Amazónia, onde ficarei pelo menos nos próximos quinze dias. Encaro com prazer duas semanas no mesmo sítio (se bem preferisse estar num apartamento, é verdade); o sedentarismo tem encantos inesperados.

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O trabalho em B. está parado, à espera da maré para ser puxado para cima. Como aconteceu em Parnaíba, também esta etapa começa por um período complicado: a próxima maré é na Sexta-feira Santa. Sérgio não antevê problemas - de qualquer forma a ideia é trabalhar no bote aos fins-de-semana, e um feriado deve estar incluído na mesma categoria.

A gestão de pessoal (ou recursos humanos, para quem prefira linguagem mais actual) no Brasil é um exercício de paternalismo. Ontem vinha no carro com Sérgio que me explicava as tácticas necessárias para conciliar disciplina e produtividade (o que inclui a simples assiduidade ao trabalho). As pessoas não encaram o trabalho como uma relação profissional, monetarizada e independente de afectos e sentimentos pessoais em relação ao patrão. (Por vezes percebo-os tão bem.)

No caso de Sérgio a coisa complica-se porque foi ele que formou aquela gente toda para trabalhos relativamente especializados, o que aumentou a empregabilidade deles - não há ninguém em S. Luís que saiba o que aquela malta sabe.

De maneira Sérgio modula "o acelerador e o freio", como ele diz. É duro e exigente com eles, mas é também flexível e fecha, por exemplo, os olhos a uma saída precoce à sexta-feira - dia em que os empregados têm direito a uma dose de "cachaça boa". Eu também gostava de fazer uma pequena festa no escritório às sextas-feiras, quando trabalhava em escritórios; foi um hábito que adquiri em Genève no IMS. Só que lá a festa era organizada por nós, e R., o patrão não sonhava sequer que tal coisa se fazia nas suas instalações, durante o seu tempo de trabalho.

Sérgio tem um fundo de poucos milhares de reais para empréstimos aos empregados, que podem assim fazer face a uma despesa (imprevista ou não) sem recorrer ao crédito formal das empresas. Os empregados inscrevem-se e quando o fundo está mais ou menos completo inicia-se uma nova ronda. Serve para fazer obras em casa, dar uma entrada para uma mota, qualquer coisa.

Ontem passei uma grande parte do dia a fazer o inventário do equipamento e assisti a uma boa dose de instantâneos da vida real num estaleiro naval do Nordeste barsileiro no século XXI. A minha admiração por qualquer pessoa que queira montar uma empresa no Brasil cresceu exponencialmente. Tanto que se aproximou perigosamente da compaixão. Coisas evidentes, simples, neutras como sei lá, a necessidade de manter um track record do uso das ferramentas ou do material utilizado na construção de cada barco são objecto de discussões, amuos, explicações sem fim. Isto num estaleiro que celebra esta ano vinte e cinco anos de vida.

Sérgio fala frequentemente na marca Leopard, um estaleiro semelhante ao seu mas na África do Sul. Enfim, semelhante não é bem o termo. Era-o quando começou, há pouco mais de vinte anos; mas hoje tem mais de mil empregados, contra os vinte de Sérgio. E não é por falhas de Sérgio, que está constantemente a melhorar e a aprender, a lançar novos projectos, a formar e a formar-se; é simplesmente este conjunto de coisas às quais eles chamam Brasil, com um encolher de ombros e um sorriso: burocracia, leis laborais que infantilizam as pessoas, falta de infrastruturas, legislações absurdas (enfim, absurdas do ponto de vista da eficiência económica; de outros pontos de vista são tudo menos absurdas). "Mas agora é tarde para me ir embora", conclui com o mesmo encolher de ombros e o mesmo sorriso.

Não concordo, claro. Só é tarde quando se está morto, e aí ser tarde ou não é irrelevante.

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Como qualquer pessoa que gosta de viajar gosto de mercados. O da Praia Grande, em S. Luís, é-me particularmente querido. Vou lá quase todos os dias comprar cinco reais de caju ao senhr que conheço como Patrício, porque é assim que ele me chama; beber uma cachaça no Nego, muito mais branco do que qualquer de nós; beber um copo no homem do Corinthians, já por aqui falei dele.

Nunca lá tinha ido comer, porque não calhou. Hoje fui à tia Amélia (ao contrário de Cascais, aqui as tias assumem-se). O objectivo era triplo: a) gastar menos do que o habitual, estes dias atrás do solposto custaram caro em transportes; b) variar da tia Dica; c) provar os camarões ao alho e óleo que a tia Rosa, filha da tia Amélia me garantiu serem a sua especialidade.

Nunca aqui comi camarões ao alho e óleo porque um dos meus pratos favoritos é camarão al ajillo e sabia que a imitação me deixaria triste. Não deixou. Os camarões estavam uma delícia, foi um dos melhores almoços em muito tempo. Infelizmente foi também o mais caro de sempre (entendendo-se sempre, e muito tempo como a minha estadia no Brasil, ou seja, desde o dia nove de Fevereiro). Há pessoas a quem poupar dinheiro não é, pura e simplesmente, dado.

Depois do almoço fui ao Nego beber uma cachaça (uma pinga, doravante). Com uma decisão fora do comum perguntei-lhe se tinha aquilo em garrafa. "Tenho, claro". "Quanto custa?" "Cinco reais". É uma garrafa pequena, é certo; mas para terem uma medida de comparação antes do almoço comprei um piripiri "ao leite de coco" numa garrafa semelhante por dez reais. E não é nem metade bom piripiri como aquela cachaça é boa pinga.

Acabei numa sala a ver Capoeira. Pela primeira vez gostei de Capoeira, gostei de S. Luis, gostei do Brasil, gostei de tudo. Foi a primeira vez que vi Capoeira que não tem aspecto de ser um bailado combinado. Ali ressaía a arte marcial, não a dança. As pessoas estavam vestidas normalmente, havia claramente um vencido e um vencedor, os contendores apareciam e eram substituídos consoante ganhassem ou perdessem, a música era excelente, excelente. Quando a luta acabou começaram todos a dançar, e lembrei-me da senhora em Maputo cujas partes do corpo dançavam independentemente umas das outras. Que bonito foi, que lindo, que simples. Eu era decerto o único estrangeiro da sala, as pessoas faziam aquilo para se divertir, riam-se e abraçavam-se e lutavam e cantavam para elas, não para a audiência.

Mas chovia torrencialmente (isto é quase um pleonasmo) e quando saí do mercado, depois da Capoeira e decidi vir para o hotel tive de parar na Sanzala, uma desgraça. Enfim, na realidade é uma tasca como as havia no Bairro Alto há trinta anos.

No Portas da Amazónia posso ler e apagar a luz sem ter de me levantar ou dormir de luz acesa; tenho uma mesa para trabalhar, escrever, ler e - muito mais raro - uma cadeira; tenho armários para as roupas; o quarto está limpo e parece um quarto, não uma divisão da qual os donos não sabiam o que fazer e decidiram, por acaso, transformar num quarto para alugar. Os outros hóspedes não me fazem pensar que posso ser assaltado não à porta da rua, mas à do quarto. Um candeeiro na secretária e isto seria perfeito, suponho. Já é, mesmo sem candeeiro.


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