quarta-feira, 14 de março de 2012

Parnaíba, Piauí, Brasil, 14-03-2012

Todos os dias às cinco e meia da tarde Edgar passa por mim, roupa limpa, sorriso na cara, orgulhoso e direito na sua bicicleta. Eu estou sentado na esplanada perto do rio, a fazer as contas do dia e as contas ao dia, a pensar no que me separa do mar, de ti. Todos os dias fazemos um grande aceno um ao outro; uma vez convidei-o a parar para beber um copo comigo, mas ele declinou, polidamente. 

B. está a muito pouco do mar, de S. Luís, de ti, de nós: laminar por dentro e por fora os dois buracos no casco de bombordo, pôr interruptores nas bombas eléctricas, fazer e instalar um leme improvisado (pedido de Pelé, armador - e mestre, excepcionalmente - da embarcação que nos vai rebocar). Se não chovesse amanhã cheiraria a mar (já cheira; cheiraria mais).

Mas chove. Não muito, porém o suficiente para retardar isto tudo, para nos pôr a viver numa espécie de limbo, pescoço para o ar. Hoje demos uns passos; vai ser assim até ao último dia: passo a passo, degrau a degrau, aberta a aberta.

Uma mulher apaixonada amar e um homem competente trabalhar, escrevi recentemente que são as coisas que mais gosto de ver. Pensei nisso hoje quando falava com Pelé e com os seus homens. Não falo por todos os skippers, longe disso. Mas há poucas coisas que me façam sentir tão fortemente parte de uma comunidade como falar com um marinheiro competente. Talvez porque não goste muito de falar, quando se trata de trabalho, e a competência poupa muitas palavras (também escrever é poupar palavras, mas isso são outras núpcias).

Há um mês que trabalho praticamente sem parar; é como se estivesse embarcado. De vez em quando uns momentos de folga, uns sem vento e outros com vento a mais, às vezes bolina cerrada, outras um través folgado; de quarto em cima ou de quarto em baixo, trabalho sempre.  A única diferença é que aqui o que se mexe é o rio. Parnaíba é um navio imóvel encalhado numa embarcação de vela que em breve partirá. Como todos os navios encalhados em breve Parnaíba desaparecerá de vista.

A viagem para S. Luís vai ser fisicamente cansativa, mas estou descansado como nunca pensarei que estaria. A competência poupa palavras e muitas outras coisas (até dinheiro poupa, apesar de ser cara, geralmente). Tenho pena de não fazer a viagem com o Ayub, o mestre que nos levou, feitos submarino, da Pedra do Sal até ao porto de Luís Correia. Mas as coisas são o que são, e Pelé talvez até seja melhor escolha.

A viagem vai durar mais tempo do que eu previ porque não vamos navegar de noite. Vai ser uma viagem boa. E se não for paciência, o problema é dela, não é meu.

Duas bombas manuais de alto débito e duas bombas eléctricas de menor débito mas potentes. Três tripulantes: um ao leme e um a cada bomba, na pior das hipóteses; um ao leme e dois à conversa, na melhor. Há coisas sobre as quais não vale a pena falar muito, antes. Depois se verá se valerá a pena falar, depois.

Vou lembrar-me deste canto do rio, do arco elegante da ponte, da árvore cujo nome lamento não conhecer. Um conjunto harmonioso, bonito, que nem a música do café do outro lado da rua consegue estragar.

A fábrica de recordações começou a funcionar. Bom sinal.

Quando chegar a S. Luis vou tirar uns dias de férias. A simples ideia me descansa; pergunto-me como me sentirei ao fim de três dias sem ver B.

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