Com ou sem Bosão de Higgs, é fácil provar a existência de Deus. Em cinco dias de trabalho, houve apenas um em que chovia à minha hora de saída, e nem sequer foi hoje.
Fazer a Madeira Drive à beira-mar, a um domingo, é um passeio apaixonante. Ao longo de pouco mais de dois quilómetros é possível passar pela Era Vitoriana, contemplando as centenas de pessoas que ainda se passeiam no Brighton Pier (um pontão de 533 metros que, no séc. XIX, se tornou na principal atracção da cidade), entrar na Era Industrial e ver o Volk's Electric Railway, o mais antigo caminho-de-ferro eléctrico do mundo em funcionamento (data de 1883), lembrar Londres com a amálgama de hipsters com quem nos cruzamos e uma roda gigante ao jeito da London Eye (não será por isto, mas também não é por acaso que os ingleses chamam a Brighton "Little London"), sentir saudades do Paredão e saber que apesar da gente a pedal ou com cara de praia (mesmo se vestida até ao pescoço) não é possível dar um salto à Azarujinha e ver se a piscina encheu, se lá está a senhora que usa Coca-Cola em vez de bronzeador, ou se recuperaram o café onde se comiam uns caracóis tão bons.
Do Pier até casa, o DARK HORSE, demoro 25 minutos. No outro dia fui pela praia e demorei duas horas. Em vez de areia, a praia tem pedras, a maioria do tamanho de um punho, ou um pouco maior. Os pés enterram-se nas pedras e é como se estivéssemos a andar no Inferno de Dante desenhado por Doré: além de estar frio (cada vez mais me convenço de que se o Inferno é quente é para lá que quero ir), as almas-penadas agarram-se-nos às pernas a pedir boleia. Nos últimos 40 minutos dessa viagem decidi provar a mim mesma que era leve, e tentei caminhar enterrando os pés o mínimo possível -- tudo o que alcancei foi uma leveza pesada, mas talvez seja apenas uma questão de sapatos.
Os ciclistas são velozes e fazem-me alguma inveja. As bicicletas aqui são caras, principalmente as maravilhosas que vi no Stables Market em Camden Town, cujos preços me obrigariam a trabalhar num mega-iate, sítio onde não preciso de uma bicicleta para nada; vou-me apercebendo, porém, de que em libras esterlinas não existe o conceito de barato -- é affordable ou não é, e geralmente não é.
Por falar nisso, ainda não sei quanto vou ganhar. C., a minha chefe, tem estado fora. Tem uma atitude que me agrada: disse-me imediatamente como queria as coisas feitas, corrigiu-me quando as fiz mal, aconselhou-me quando quase as fiz mal, elogiou-me quando foi pertinente. «OK, não fazes flores no latte mas o leite está muito bom». Hoje, ao contrário de ontem, quase não tivemos clientes. À hora de almoço aproveitei uma aberta e fui sentar-me lá fora, olhando para o sítio onde trabalho e tentando perceber o que lhe falta. É uma coffee shop com um café excepcional, na qual ter clientes é uma excepção. Existem três Starbucks e mais uns símiles na zona, mas não numa rua tão gira e tão cheia de gente. Pergunto-me se será da ausência de sofás -- por motivos freudianos, certamente, o sofá tornou-se num chamariz comercial; ninguém entra e muito menos fica num sítio onde não haja um sofá.
Tive tempo para varrer o andar de cima, que não devia ter sido varrido há pelo menos 20 anos, e para limpar a casa-de-banho, uma das mais gratificantes tarefas que levei a cabo nos últimos tempos. Num mega-iate com hospedeira permanente limpa-se, geralmente, o que já está limpo e os resultados são decepcionantes -- a diferença entre estar limpo e "a brilhar" pode, por vezes, ser muito ténue --, ao passo que num café britânico com pessoal a menos é possível ver a diferença em tudo o que se limpou, mesmo que chamemos limpar a passar um pano húmido por cima de uma prateleira cuja cor já se confunde com a do pó. A verdade é que o sítio é muito agradável e o aspecto tão rústico de tudo (um chão de tábua que nunca foi esfregado pode parecer apenas um chão de tábua vindo de um celeiro com cem anos na Carolina do Norte, como eram as paredes do Rooster's, em Charlotte) disfarça a sujidade. Felizmente, a Food Standard's Agency não é a ASAE e é fácil para o café mais simples (sem sofás) ter as portas abertas sem se parecer com um laboratório de análises clínicas. As sanduíches do sítio onde trabalho são feitas e embaladas à mão, medimos a temperatura do que temos no frigorífico de três em três dias e a placa onde fritamos o bacon explode se a borrifarmos com detergente. A louça, no entanto, é lavada duas vezes: uma à mão e outra à máquina -- dependendo do funcionário de serviço ao lavatório uma sai melhor do que a outra, ou vice-versa.
São oito horas e acabei de jantar. O M. teve a delicadeza de preparar o jantar para mim. Sente-se hoje particularmente sozinho, porque G., o tripulante que restava além de mim, foi viver para um hostel. Também sentirei a sua falta -- é gente boa. A marina não é o sítio mais confortável do mundo, mas não é, de longe, o menos confortável, sobretudo se excluirmos a probabilidade de apanhar uma pneumonia sempre que fazemos o trajecto de 50 metros da doca à zona coberta. Os pores-do-sol aqui surpreendem-me de dia para dia. M. comentava, há tempos, que nem nas Caraíbas os viu assim. A explicação é simples,* e não precisa de Bosão de Higgs: Deus existe e está em todo o lado.
*A Oxford Comma também.
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