quinta-feira, 3 de maio de 2012

Rendezvous Bay, Anguilla, 03-05-2012


Nada no mundo me é indiferente e, no entanto, ei-lo indiferente ao meu cansaço, à minha insatisfação. Lembro-me insistentemente de uma canção de Jorge Palma com o verso "não foi p'ra isto que eu vim cá". Anguilla, tão bonita, quase não se vê. O nevoeiro, de pé há vários dias, é palpável como a solidão de quem vive esta vida, tenha ou não tenha escolhido. Penso no protagonista de Lobo do Mar, de Jack London, tripulante por acidente (náufrago, primeiro) numa embarcação de capitão implacável, super-homem, e em como me faltam força e inteligência para aceitar as circunstâncias. Não saí, ainda, da infância e da tirania caprichosa de uma certa ideia de justiça que a vida se encarrega de desfazer. Afinal, o mundo não é como devia ser, nem as coisas são como deviam, nem como me convém que sejam, nem como, nem mais nem menos, nem pouco mais ou menos, nem nada que se pareça com. O passo seguinte é aceitar que as coisas são como são (onde é que já ouvi isto?), por mais estúpido que seja admitir que ainda não as aceitei como são, nem tão-pouco a mim como sou. Mas não fará parte do processo de crescimento de todos e de cada um o dia em que encolhemos os ombros e decidimos que tentar lutar contra a ordem natural das coisas é uma empreitada grande de mais para nos darmos sequer ao trabalho de tentar? E como se combate o medo de não saber distinguir as coisas pelas quais vale a pena lutar das outras, dos Lobo Larsens deste mundo que um deus ex-machina se há-de encarregar de liquidar?

Afinal, não é questão de inteligência, que não me falta -- tenho que baste para saber que estou exausta de pensar que as coisas estão a ser como são e não como eu quero. É de me faltar tudo o resto: vontade, paciência, presença de espírito. Maturidade.

Duas engenhocas e um panamá, que me fez mais feliz do que as engenhocas. Andei sorridente durante meia hora pelas ruas de Marigot, envergando na cabeça a parte certa do motivo da minha vinda às Caraíbas: sol, mar, amor, alegria. Era de noite e chuviscava. Nunca acabo o trabalho a horas de ver o Sol e de cortar o cabelo, pelo que até conseguir cortá-lo estou determinada a escondê-lo debaixo de um magnífico Homero Ortega número 56, fabricado em Cuenca, no Equador.

A taxista Marie, dominicana, que me trouxe de Philipsburg no sábado quando lá fui comprar os aparelhos -- o pretexto era ir à farmácia, mas nenhuma tinha o que eu queria, daí que comprei outras drogas --, não é muito simpática, mas é eficiente e educada. Disse-lhe que estava com uma certa pressa, mas compreendi que não podia fazer nada: era feriado de Carnaval e às nove da manhã as ruas estavam pejadas de locais a dançar, já bebidos, e carros alegóricos manhosos patrocinados por marcas de cerveja e operadoras móveis. Marie escolheu um atalho, uma rua estreita, sem trânsito e com carros estacionados de ambos os lados (nisto a cidade faz lembrar Lisboa, só que em melhor, mesmo assim), mas a meio do caminho havia um carro parado no meio da estrada. Um local (preto, sim, mas Marie também) de uns 18 anos estava do lado de fora, a falar com o condutor, e olhou de soslaio para o táxi, transpirando agressividade, sem mostrar a mínima intenção de se despachar. Marie explicou-me que o rapaz estava à espera de que ela lhe dissesse alguma coisa, mas não se atreveu: «pode ver pela linguagem corporal dele, pela maneira como se veste, que não se deve meter com esta gente. Desta vez se calhar não faz nada, mas da próxima que vir o carro vem com os amigos e partem-mo todo com bastões. Já me aconteceu.» Contei-lhe que fui roubada na ilha, disse-lhe onde. Soltou uma gargalhada: «nessa zona não só não se pode deixar nada no carro -- nem sequer no porta-bagagens -- como o melhor a fazer é deixá-lo sempre destrancado; eles forçam a fechadura tenha ou não tenha coisas à vista, por isso é melhor que fique aberto». A informação chegou com três semanas, trezentos dólares e algumas dores de cabeça de atraso, mas foi bem vinda.

Para lá tinha ido de minibus, por dois dólares, a ouvir conversas em espanhol indecifrável e inglês tropical, a passar troco e pagamento de mão em mão, a sentir-me de novo em casa, como me sentia nos autocarros de Antígua, cujos percursos conhecia de trás para a frente e cujas viagens eram um dos pontos altos do meu dia; para Marigot voltei por 18 dólares, sã e salva, a tempo de dar os retoques finais no meu trabalho, antes de aparecer o armador.

Esta estadia é curta, de sábado a sábado, mas muito mais penosa para mim do que a anterior, como a próxima será mais do que esta, e assim sucessivamente. Estarmos em Anguilla com este tempo não ajuda, a família está sempre no interior do barco, a escapar à chuva, decerto aborrecida com a sorte que lhe calhou. Mesmo com a ajuda dos rapazes, resmungões incansáveis e eficientes (tirando S., que deverá ter feito uma cama da pior maneira que já vi), percebo que isto não é para mim. Os padrões de exigência são elevadíssimos para que uma pessoa só os cumpra sem chegar a um esgotamento, sem chegar a odiar o seu trabalho, sem uma lavandaria com mais de um metro quadrado para poder dobrar toalhas de banho sem as arrastar no chão. O dinheiro não é tudo. Não é nada, aliás.

Preciso de trabalhar num barco onde, quando fundeado, possa usar o meu panamá. Enquanto navego não: ele é livre e voa.



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