sexta-feira, 11 de maio de 2012

Bequia, Grenadines, 26-02-2011


A coincidência foi eu ter pensado à tarde no facto de um gajo ser pago para ser ele próprio – o que não se aplica só aos charter skippers, claro; nada impede um, sei lá, funcionário internacional de ser pago para ser o que é (e ser muito mais bem pago, evidentemente) – e ao jantar, uma bolognese feita pelo Hollie, eu ter contado a história do jantar de Ancona e a Kathrin ter concluído “isso és tu”.

Já por aqui contei a história de Ancona: reduzida à moela, três suecos ricos dão-me boleia em Itália para Ancona e no carro eu conto-lhes o que fazia em Itália e como vivia.”É impossível viver com esse dinheiro por um dia; é o que cada um de nós gasta numa só refeição”. Palavra puxa argumento, argumento desafio e chegados a Ancona eu tenho a missão de lhes mostrar que sim, é possível. Na piazza vejo um grupo de velhotes a jogar a versão local da pétanque e peço a um deles, no meu então aceitável italiano, que me indique um restaurante bom e barato. Para reforçar, conto a história dos suecos. “Estás a ver aquela porta?”, pergunta um deles apontando para uma porta castanha, anódina, anónima. “Estou”; “então aparece às sete e meia (às dez apanhávamos todos o barco para a então Jugoslávia) com os teus amigos. Aquele restaurante é o que procuras”.

Quando abri a porta e entrei caíram-me duas partes constituintes do aparelho reprodutor até ao chão: era visivelmente um restaurante de luxo, e eu nem comendo pão com manteiga durante dez dias compensaria aquela despesa. À medida que o jantar se foi desenrolando as coisas continuaram pelo chão. O dono (por coincidência o senhor que me tinha indicado “aquela porta castanha”) preparara um menu para nós. Foi uma das melhores refeições da minha vida: lembro-me dos spaghetti al ucellini do primo piatto, do Barolo (creio; e se foi, foi a primeira vez que o bebi), da grappa com que terminou o jantar, mesmo antes de se propor levar-nos ao cais.

A conta foi: “o Luigi é meu convidado; para os senhores, cada jantar custa –“ e diz um montante que devia ser um décimo, se tanto, do preço normal daquele jantar e se integrava perfeitamente no valor que eu tinha dado aos suecos como sendo o preço médio das minhas refeições. Imagino que para os suecos ainda hoje devo ser uma espécie de deus da Itália, capaz de comer num restaurante de luxo, ser levado ao porto pelo proprietário em pessoa e pagar o preço de uma pizza nas tascas rascas que então (então?) frequentava.

"Isso és tu”, diz a Kathrin. Não creio. “Eu” é o tipo que é pago para ser skipper, para vos levar a ver a vida nocturna de uma sexta-feira em Bequia, para vos desenrascar quando metem o pé na argola no mercado, para vos reservar uma mesa no Gingerbread ou vos comprar uma lagosta de dois quilos e meio e com isso fazer uma salada para sete pessoas que não, não estava tão boa como vocês disseram, devia ter ficado duas horas no frigorífico antes de passar à mesa, mas enfim, estava comestível e quase se sentia a lagosta; não é o tipo a quem os deuses põem a mão por baixo e decidem oferecer uma flor, uma lindíssima e inesperada flor.

E agora na varanda do Captain Mack's Bar and Galley, um primeiro andar em Bequia com vista para a baía, que de tantos barcos com as luzes de fundeadouro acesas mais parece um prolongamento da cidade – e o prolongamento mais habitado – lembro-me de outra frase a meu respeito, na Ilha de Moçambique, estávamos todos, um bar bonito – acho, mas não tenho a certeza, que também era uma associação cultural – e começou a tocar uma música africana e a Karen diz “this man can move, given the right stimulus”, e eu pensei “o problema, Karen, é que só sei mexer-me se tiver os estímulos certos e eu queria aprender a mexer-me também com os estímulos errados”, e isso é muito mais “eu”.

De qualquer forma a verdade, a verdade única e verdadeira é que quero que a memória vá pentear macacos, apesar de estar sempre a pensar nela e nas coisas que me traz. A memória e não só, claro, há muitas coisas de hoje que também quero que vão para o diabo que as carregue, antes mesmo de passarem a soleira da porta da memória; como a miúda hoje no Mack's, a dançar comigo daquela forma completamente lasciva que elas aqui têm, e eu a certa altura tive de dizer-lhe “stop”. Ela parou logo, verdade seja dita, e aproveitou para me pedir uma cerveja; que lhe dei, claro.

Há festas por todo o lado, hoje, e os restos mesmo assim bastante altos das diferentes músicas chegam a bordo um bocado entrecortados pelo vento. O tempo continua uma porcaria e não é quase de certeza amanhã que saímos para Canouan. Paciência; vou directamente para Mayreau, e se houver tempo (não vai haver) paramos em Canouan à volta. Na quarta-feira temos de estar aqui para tirar os pontos ao Bernie e subir para o Marin com o vento que tem estado vai ser uma tourada.

II

E assim é: mais um dia neste porto do qual um poeta local diz

...Bequia on the world
chart provides a wide deep harbour, not small
or obscure, a trade wind port-of-call
for sailors from around the world

of all persuasions: on the lam
or on the loose, wealthy or poor,
of every creed, language or colour.
I know them. I am one of them
...

III

Há pouco chegou um gajo que se pôs na bóia ao lado de mim; vi que ele pediu ao barco do pão - há um centro comercial flutuante em Bequia, tenho de contar isto - que o levasse a terra e claro que o homem parou no JINGLE quando o chamei.

O tipo - um branco dos seus vinte e muitos trinta e poucos - estava com uma cara de chateado de fazer dó e mandei-lhe uma piada, tipo "vais fazer a volta do padeiro". "Pois, e eu que pensava que ia para a terra", respondeu de mau-humor; a conversa continuou assim até que ele me disse "vou mas é trabalhar como boat boy aqui em Bequia, estes gajos fazem mais dinheiro do que eu". Estava realmente zangado, o rapaz, e ainda mais o ficou quando eu retorqui "good for them". Há provavelmente milhões de brancos a ganharem milhões de dólares mais do que ele, mas que um preto ganhe a sua vida isso é que não.

Isto dito é verdade que Bequia é caro, ultrajosamente caro, e dar quase três euros por uma coisa a que, só por ser feita de farinha (e é do tamanho de um papo-seco) eles chamam pão dói.

Mas as coisas são o que são, chove desalmadamente e o pão - e o tomate e o manjericão e tudo, com a santa excepção do rum - é caro. Consequências sem dúvida do aquecimento global, que tem provocado uma das épocas mais frias dos últimos anos e do mercado, isto anda tudo ligado.

O centro comercial flutuante em Bequia é composto por uma série de botes, o mais das vezes mas nem sempre a motor, que nos trazem pão, fruta, gasóleo, água, gelo, lavandaria, colares e produtos artesanais, peixe, lagosta e levam o lixo (1,30 euros por saco).

I know them. I am one of them.

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