G. pôs-se a ler "O Principezinho" no sofá. Olhava, aluado, o tecto como se fosse o céu e evadia-se nele. C. entrou na sala e perguntou-lhe: «O que estás a fazer?» Ele respondeu: «O atum! Ahhhh, estou a ler...» O livro estava ao contrário; G. pensava no que ia fazer para o jantar.
Noutra ocasião, C. decidiu rever com G. algumas conjugações dos verbos em castelhano. Há, no castelhano, um tempo verbal chamado "pretérito pluscuamperfecto". G. tinha a certeza de que de onde ele vinha, lá na Argentina, o nome era "Juan Luis Perfecto". Um senhor tempo verbal.
Estas foram duas das histórias que nos puseram a rir à gargalhada no jantar de despedida de C., num bar/tasca chamado Molta Barra, com um Pa Amb Oli delicioso e uma tapa de chouriços cozinhados em sidra a que chama "políticos a la sidra", vá lá saber-se porquê. C. emigrou para o Canadá, onde tem os filhos e, ao que parece, o futuro. «A Europa morreu», dizia-me H. no outro dia. Senti isso mais em Palma do que noutro sítio qualquer. Da gente estrangeira que aqui conheci, só uma pessoa quer ficar (e é porque vive em Inglaterra, onde o clima se pode tornar mais detestável que qualquer crise, real ou anunciada).
G. é um miúdo doce que partilhou a casa com C. e N. antes de nós. Fez uma despedida comovente a C.: como se esqueceu dos presentes no outro lado da ilha, colocou cartazes nas escadas do prédio dizendo piadas e ternuras. Como todos os argentinos, usa muito a expressão «que liiiindo». É um povo que já me está mais no coração do que a maioria dos cardiologistas aconselha.
Palma está cheia de argentinos. Só S., um argentino adorável que conhecemos em Antígua, tem uns 20 amigos argentinos por aqui. Numa noite conhecemos uns seis dos seus amigos, todos empregados de bares e restaurantes, todos simpáticos e sorridentes, quase todos giros, com buenos aires. E todos longe do seu país, como Gu., que o detesta e não cede à hipocrisia de dizer "que o adora mas não pode viver nele". Eu não sei, já, se gosto de Portugal. Não gosto de que os meus amigos estejam desempregados, ou que não possam mudar de emprego porque de certeza não encontrarão outro. Não gosto de que os meus amigos tenham de deixar um país onde gostam de estar porque não conseguem, nele, viver como viveriam noutro. As razões pelas quais deixei Portugal foram apatrióticas, mas voltar cada vez mais me parece um esforço, uma decisão difícil. Tenho saudades desses amigos e -- muitas -- da minha família. Mas não tenho do resto. Além de que ando a reler Eça de Queirós. Se me perguntam o que leio respondo, simplesmente, «Portugal».
Talvez haja uma explicação para não ter saudades: «O essencial é invisível aos olhos»; o atum, se não há, também.
"É um povo que já me está mais no coração do que a maioria dos cardiologistas aconselha." Tão bom :)
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