quinta-feira, 7 de junho de 2012

Horta, Açores, Portugal, 07-06-2012

Largámos às quatro da tarde de Marigot Bay. Na manhã seguinte estávamos a reparar velas. Estão, como dizer, velhotas. Por causa disso passámos um dia inteiro de yankee 1 e trinquete, sem a grande, que esperava pela secagem da cola de contacto. Mesmo assim fizemos 170 milhas.

O "DARK HORSE" é uma embarcação magnífica, armada em escuna; 60', 23 toneladas, 33 anos, 7 tripulantes, 2200 milhas pela proa, E, ENE e ESE 3 a 5, mar de pequena vaga a moderado, sol. Deve haver maneiras melhores de começar uma travessia, mas eu não sei quais são. Talvez começar com uma alheta? Não. Gosto da bolina, é a maneira mais rápida de amarinar a tripulação e de julgar o bote.

E o bote é magnífico. Parece que foi desenhado para mim.

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Passámos o Trópico de Câncer à meia-noite menos um minuto. Estamos oficialmente fora dos trópicos. Os alísios continuam, graças a Deus, se bem mais variáveis. A velocidade baixou. A tripulação está quase toda amarinada - falta a N. e L., estamos a tratar delas.

O tempo continua óptimo.

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Um gajo está deitado no camarote. Sente os movimentos do barco, o barulho da água no casco, mas tudo parece imóvel.

Pouco depois está no poço, caneca de chá na mão, à espera da sua vez de governar. As noites já não estão quentes, mas ainda não estão frias. Amanhã tenho de pôr uns sapatos, pensa. O barulho da água é diferente, e é o mesmo: alegre, leve. 15 nós de vento real; com os 8 da velocidade os 20 de vento aparente já fazem os brandais zumbir. Tudo o é leve. A noite, o leme, a ideia de que os próximos 12 dias (se tudo correr bem) ou 15 (mais provavelmente) serão passados aqui. Nem todos serão assim, claro: haverá mau tempo, chuva.

É impossível definir de onde vem esta sensação de estar nos braços de um deus feliz, ou nos de uma deusa bela, sensual e libidinosa.

Ao quarto dia o vento caiu, finalmente. Já vamos no segundo peixe - um mahi mahi ontem, um bonito hoje.

A comida não é o ponto forte desta viagem, mas o Mike compensa esta ligeira deficiência sendo um óptimo pescador. (Se não fosse o peixe o regime seria totalmente vegetariano).

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O frio passou. Hoje de manhã tivemos o primeiro aviso do que está para vir: céu nebulado e frio.

Motor, motor, motor. Começou hoje às duas e meia da tarde; e vai durar pelo menos mais dois dias... Ficar parado no meio de nada é chato; avançar com este barulho é uma merda. Deve ser uma das mais perfeitas definições de dilema que conheço.

O vento voltou, e com ele o frio: traz com ele um bocadinho do norte de onde vem.

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"O que é que você quer que eu faça de si' N.?" Não perguntei. Na verdade a rapariga interessa-me pouco - é gira e bem feita, mas no mar essas qualidades (no sentido de características) são irrelevantes.

N. é brasileira. Além de bonita e boa deve ser rica, ou pelo menos vir de uma família que o é. Não sabe decerto o que o universo, nem o que é um centro, mas se soubesse considerar-se-ia o centro do universo. Hoje houve uma pega abordo: um inglês mais ou menos operário de Liverpool e uma brasileira mais ou menos idiota de São Paulo não se compreendem muito bem, por muitos esforços que façam. E nenhum deles faz.

C. pediu desculpa, quando saiu de camarote e se juntou a nós. N. estava ao leme e não respondeu. "N.?", chamei. "Ainda não posso". A verdade é que os dois têm culpa; e ainda mais verdade que me estou completamente nas tintas.

Não sou super-homem, nem bom pastor. E há muito abandonei a ilusão de que era ambos, ou pelo menos um pouco de cada. O objectivo não é sermos amigos, é sermos um tripulação; e se dessa tripulação saírem algumas amizades tanto melhor; se não, paciência. "O que é que você quer que eu faça de si, N.?"

Se quiser ser tripulante eu posso ajudar, e gostaria muito; se preferir ser passageira, vou ignorá-la. A escolha é sua, e eu limitar-me-ei a esperar que a faça.

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Continumamos à vela, com um vento fracote mas suficiente para nos fazer andar a 5 nós. É pouco, mas melhor do que nada e infinitamente mehor do que os 5,5 que fazemos a motor.

Estamos quase a chegar à "esquina"; amanhã ou depois de amanhã "viramos à direita".

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Os dias passam a correr. Mal acabo o pequeno almoço é noite e já jantamos e estou a vestir-me para o quarto; é intrigante, porque se me perguntarem "o que fizeste durante o dia" não sei que dizer. Naveguei, li, dormi, comi, lavei a loiça, naveguei, mareei os panos, tomei um duche, dormi, naveguei, comi - não fiz nada, em suma. E apesar disso amanhã faz uma semana que saímos de St. Martin, e estaremos provavelmente a pouco mais de outra semana da Horta. Largámos ontem, chegamos logo, daqui a bocadinho.

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A lua vai crescendo. Mais dois dias e estará em quarto crescente; vamos chegar à Horta com ela cheia. Gostava de a ver logo atrás do Pico, um dia.

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Estou ansioso por revisitar a Horta. Tanto vivi, lá...

Visito o meu passado como se não fosse meu, como se fosse a vida de outro, ou outra vida.

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"I am all things, save soul of fellow men / And the very God" Tennyson.

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Vais ao leme e divagas. Divago, Jivago. A divagar se vai longe. Porque é que longe é melhor do que perto? E se tentasses seduzir-me? Seduz-me tu. É a tua vez. Senhoras primeiro. Daqui a pouco haverá vento. Quem é A? Como sabes que ela verá vento? Quem é ela? Aquilo é a Via Láctea; ali está a Polar. Vai alta, agora, estamos cada vez mais perto dela. Estás com a cabeça nas estrelas. E os olhos no vento. Gosto dos sítios de onde não se vê a Polar e de ouvir os brandais a vibrar. E eu de quando tu me fazes vibrar. És o meu vento. Divagas. O vento chegou. Chegámos. Terminus. Tout le monde descend. Para onde vamos? Para longe; perto é um não-lugar. Mas eu gosto de te ter perto de mim. Eu sou um não-lugar. Amo-te. Tira os olhos da Polar, não olhas se não para ela. Mentira. Também olho para Sirius, e para os Gémeos. Castor e Pollux. Não vejo Orion. Só te vejo a ti. Não vês nada. Divaga. Aí está o vento. E o porridge. 7 nós e meio e os brandais a vibrar. Concentra-te. Deixa as estrelas. Seduz-me. Daqui a pouco estamos nos 20 nós de vento. Seduz-me.

20 nós, 25, de vento; 8, 9, 10 de VMG.

Sonhos síncronos.Continuas a delirar. O barómetro baixou, finalmente. Depois de o vento chegar.

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290512 - Os trópicos deixaram-nos, definitivamente. Calças, camisa de manga comprida, botas, veste de quart e frio, muito frio, apesar disto tudo.

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300512 - As velas estão podres, completamente podres. Rasgam-se só de olharmos para elas. Esta noite foram 4 rasgões, no trinquete e na grande. A unidade de base é 25 cm. Reparamo-las com montes de cola de contacto e pano - o M. tem uma enorme reserva de tecido velho, podíamos fazer uma vela nova.

Mas os rasgões no trinquete vão ficar assim. Precisariam de praticamente toda a cola que temos.

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Nós é que somos hóspedes da vida, seus convidados. E ela é uma anfitriã generosa: pôs à nossa disposição o mar, o vento, as senhoras (e os senhores, para elas), as estrelas, o vinho e o rum e tantos milhares de coisas boas. Devemos portar-nos bem, em casa da vida; mas usufruir de tudo o que ela nos oferece. "Esta é a minha casa. Abusem, nada me faria mais feliz do que vê-los abusar de tudo o que aí está". Mas depois acrescenta, para os mais distraídos "mas não se esqueçam de que a casa é minha. Não é vossa".

"O meu país é uma embarcação de vela". Em inglês teria ficado "my country is a sailing boat". C. pergunta-me se Portugal me falta; "não". E se penso lá voltar a viver? "Não". "Onde vais assentar, se um dia assentares?" "Não sei, ainda é muito cedo para pensar nisso".

"O meu país é um barco à vela" ocorre-me depois. Ainda bem que não veio a tempo para a conversa.

A minha pátria é um veleiro no oceano.

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Pode mentir-se a quem se quiser - ao patrão, ao cônjuge, aos amigos ou ao fisco - mas não se pode mentir ao mar.

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"A água está suja? Então beba sumo de futas, N.". "Suco de frutas? Mas nem gelado está".

Um barco não é uma residência secundária.

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Frio cortante, ácido, que corrói a roupa, a pele, a carne e nos deixa omo se tivéssemos os ossos expostos.

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Uma está "sem energia psíquica", a outra "só quer morrer", uma terceira tem medo da própria sombra; um deu um jeito nas costas e mal se tem em pé (mas governa magnificamente) e o outro, marido da que tem medo, é incapaz de manter um rumo mais de cinco segundos (e pela conversa dele há outras coisas que não deve conseguir aguentar mais de cinco segundos, mas isso é problema dele, e dela). É isto uma tripulação?

Força 4 a 6 para a chegada. Mas não deve ser suficiente para podermos beber um G&T no Peter.

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Duas melancias sobre as quais assenta uma outra melancia, com duas enormes melancias por cima, (quando não tem soutien achatam-se e espraiam-se pela barriga); tudo isto encimado por uma outra melancia, mais ou menos aredondada. O corpo de L. é uma composição de melancias.

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São sete e meia da manhã. O céu está coberto, cinzento escuro, mas o sol nascente ilumina Horta. O branco das casas contrasta com o fundo cinzento do céu. O porto está cheio de iates de todo o tipo e feitio, que começam a movimentar-se: agora entra um sublime sloop, um Class J que não identifico mas devia [era o ENDEAVOUR]; um catamaran sai; uma espécie de ruína ao lado da qual o DARK HORSE faz figura de barco novo sai e iça pano à entrada do porto. Do lado dos grandes também há movimento: o MADEIRENSE 3 vem de marcha a ré para atracar - não pode fazer de outra foma, o porto está cheio de iates fundeados e não há espaço para manobrar.

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A chegada foi no Peter, claro. José Henrique não se lembra de mim, naturalmente: há 30 anos que não vinha cá, e mesmo quando estava nos Açores só ocasionalmente vinha à Horta.

Ficámos fundeados ao lado do SIDNEY ROCK OYSTER, com quem falámos no mar; e um bocadinho perto de mais do SANTORINI EXPRESS. Foi uma entrada bonita: 23 toneladas à vela, sem vento, à bolina, de noite.

Vai custar-me cara, tanta felicidade, de certeza. Ou então está paga, paguei-a adiantado.

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