terça-feira, 26 de junho de 2012

Brighton, Reino Unido, 26-06-2012

Resumindo, a vida é uma sucessão de presenças e ausências. As tuas, por exemplo, as do medo. Dez dias de mar. Eu nele, ele em mim. A Horta, de onde largámos, é linda, e não lhe vi nada a não ser as nuvens cinzentas, as ruas limpas, as encostas verde-tudo, a gente boa e a comida boa e barata -- não comia lapas desde os quinze anos, e durante os próximos quinze não me esquecerei do gosto das do Peter. O gin tónico é outra coisa, aquele gin tónico é leve como eu sou quando me esqueço de que a vida é uma sucessão de presenças e ausências -- as tuas, por exemplo, as do medo; as da linda L., com quem estive meia hora no aeroporto de Toronto; as da gente boa que conheci em Charlotte, taxistas etíopes gordos, tarantinófilos de gema, apreciadores de futebol e de vinho do porto; a tripulação que deixei como se deixa uma família que nos dá liberdade.

Porque é que o mar é tão importante? Há milhares de adjectivos e eu escolho, para ele, a palavra importante. Porquê? 

Coisas que não se pode fazer no mar:

1. Ir para o mar e decidir que não se quer estar no mar. O mar é que decide quando saímos dele e quando sai de nós. Saí dele quando ele decidiu, e ele ainda não saiu de mim. Sei que não saiu porque quero voltar a ele.

2. Discutir*. Porque o mar grita mais do que nós, pode mais do que nós, tem mais razão do que nós.

3. Desconfiar. O mar não tolera irrelevâncias.

4. Ser infeliz. O mar não tolera irrelevâncias.

5. Assobiar. Dizer "coelho". Ter frio. Tomar banho muitas vezes -- infelizmente. 

Coisas que se pode fazer no mar:

1. Amor.

2. Ter medo. Não se pode, porém, ser tido pelo medo. Ter medo no (e do) mar é o mesmo que estar vivo: natural e às vezes doloroso, mas ainda assim bom. Ser tomado pelo medo sem o conquistar é deixar de ser. O medo no mar, como na vida, deve existir apesar de nós, isto é, não deve confundir-se connosco: ele é uma coisa, nós somos outra. É natural ter medo de ser uma coisa pequenina no meio de uma coisa tão grande, ter medo de ser engolido por uma vaga, de não ter experiência, inteligência ou força suficiente para impedir o barco de adernar mais do que a conta. No entanto, quando a água mágica, fosforescente nos lambe o convés, não há muito a fazer senão pensar que Deus fez as coisas bem feitas. O barco flutua sobre uma coisa linda e perigosa, mas não tão linda e perigosa que um homem comum não a consiga conquistar. 

3. Tolerar-se. Estar só a governar durante duas ou mais horas é mais difícil para quem não se governa. A princípio, apercebemo-nos de que se não nos governarmos somos governados (pelo mar e pelos nossos pensamentos); depois, com o tempo, aceitamos: primeiro as circunstâncias -- "este é o meu quarto e tenho de o fazer comigo" --, depois as escolhas -- "eu estou no mar porque quero, comecei esta viagem porque quis, não poder não estar aqui é a consequência da minha escolha" -- e, por fim, as vantagens -- "sei de mim muito mais do que sabia antes de embarcar. Sei que não me tolero e que quero aprender a tolerar-me", por exemplo. 

4. Comer bem. Matar saudades de enchidos e bacalhau, imitar com atum-amarelo uma sopa de cação magnífica que se comeu em Évora, fazer um cebiche meio decente, um bolo de chocolate assim-assim, uma feijoada à transmontana com couve chinesa.

5. Partilhar. Muito e sempre.

6. Rir e disparatar. Que bom que é quando se faz, que bom que é quando se sabe fazê-lo.

7. Desejar um duche quente. E estar tão sujo quando se chega que, em vez de um, se tomam três antes de vestir uma peça de roupa lavada.

8. Aprender. Tudo de novo, como uma cria de lobo que sai da toca pela primeira vez. (E ler os lobos de Jack London, da terra e do mar.)

Concluindo, podem fazer-se no mar muitas mais e melhores coisas do que aquelas que não se podem fazer. A liberdade é uma questão de perspectiva, como a ausência e a presença. As tuas, por exemplo, as do medo. Tu nunca te foste embora e o medo de não te voltar a ver já se foi. Mas, se não te importas, despacha-te, que governar sem ti torna os dias e as noites longos, intermináveis.

*-- em terra também não.

1 comentário:

  1. Mais uma coisa que não se pode fazer no mar: mentir. O mar não engole patranhas.

    (Texto lindíssimo. Obrigado.)

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