domingo, 9 de dezembro de 2012

Falmouth Harbour, Antígua, Caraíbas 09-12-2012

Por onde se começa quando se volta ao princípio?

Voltei a casa. É um lar incompleto, faltam-me cá os que amo, mas não deixa de ser um lar por isso.  Falmouth Harbour deve ser o melhor sítio do mundo para se estar sozinho. Fui recebida com muito carinho, e os que cá me faltam também. Ainda não vi todos. Faltam-me, sobretudo, Sandra (a alma do Skullduggery durante a semana) e R., o segurança jamaicano que tem cara de anjo e trafica marijuana. E falta-me um trabalho que foi, afinal, o que me trouxe aqui. Mas tenho-me a mim, e já não é pouco. Até vir o trabalho (que, se Deus quiser, não há-de demorar muito), estou comigo, com os que cá estão e com os que me faltam. Sempre com os que me faltam.

A viagem à Martinique foi uma série de coincidências felizes, que só acontecem a alguém com, perdoem-me a expressão, o cu virado para a Lua. Só viajei uma vez sem ser à boleia. No último dia  dormi como uma pedra no veleiro do R., uma experiência "à antiga", não fosse o barco mais velho do que eu e o seu armador um cavalheiro como já não se fazem. Depois do último planteur da ilha no Mango Bay, jantámos no barco de um adorável casal de venezuelanos lúcidos e, consequentemente, antichavistas. Vivem na Isla Margarita e, com o que eu gasto em gasolina para encher o depósito em Portugal (cerca de 70 euros), conduzem um ano inteiro. A definição perfeita de choque civilizacional para mim -- agora fazem sentido os relatos de que, há uns anos, a gasolina na Venezuela era usada para lavar carros.

Decidi, para me despedir, conhecer Les Salines, uma praia indescritível de que o Luís me falara com uma admiração sentida --  tão grande que andou mais de uma hora para chegar à praia e outra para voltar, pingando suor, e me fez sentir estúpida por não ter ido com ele. Caminhei uma hora e depois, vendo que ainda estava longe, decidi apanhar o taxi-co. O motorista avisou-me de que só me levava até a uma povoação perto da praia, e desejou-me courage quando saí, um presságio que decidi ignorar. Comecei a andar e a pedir boleia às senhoras que via (todos os outros carros tinham homens e a minha confiança na Providência tem limites). Nada. Passados uns 15 minutos parou um carro à minha frente. O rapaz que conduzia perguntou-me onde ia e o que fazia ali àquela hora (eram 17h15, o sol estava a pôr-se e, nos trópicos, a noite cai mesmo como uma pedra num charco). Respondi-lhe que queria conhecer Les Salines e riu-se, chamou-me louca. Levou-me lá porque trabalha no Marin, de onde eu vinha e todos os dias, para evitar os engarrafamentos de regresso a Fort-de-France, dá um passeio de carro. Chegámos à praia e disse-me: «Se te despachares levo-te ao Marin.» Nem queria acreditar. A praia tinha quatro carros de turistas que já sacudiam a areia dos pés, um vendedor de gelados e uma de accras que se preparavam para voltar a casa. Vi a praia e, em dois minutos, apaixonei-me, percebi a falta de palavras e esqueci o medo que tinha sentido ao fazer aquele caminho -- eu sabia que a noite cairia, mas pensei que já que tinha começado, mais valia continuar e alguém, a tal Providência, havia de me ouvir. F. voltou a receber-me no carro atulhado de ferramentas e, como se não bastasse levar-me de volta à cidade, levou-me a ver o resto da praia, fez-me uma visita guiada, voltou a parar para acabar de comer o gelado à beira-mar. Fiquei com o seu número de telefone. Se conhecer alguém que precise de trabalhos em fibra de vidro no Marin, não o deixarei pensar duas vezes.

No dia da partida, a caminho do aeroporto carregada como um burro -- uma mala com uns 16 quilos, uma mochila com cinco e uma guitarra que não toco -- pergunto a um senhor onde se apanha o taxi-co. Diz-me: «Vais para o aeroporto? Espera um bocadinho que eu vou só pôr o Euromilhões e deixo-te lá.» Espero que o ganhe. Mais uma vez, nem queria acreditar. Como quase não acredito que conheci a M., que cantava na fila para o check-in para espantar a má-sorte de ter uma bagagem muitos quilos acima do peso permitido (um donativo de velas para uma igreja em Barbados), uma mulher interessantíssima que diz que a sua maneira de mudar o mundo é fazer lavagens cerebrais aos miúdos que ensina na sua escola; ou que encontrei L., músico jamaicano de grande corpanzil vestido com um uniforme do Jah Army, que pegou na minha guitarra e me cantou com uma voz de manteiga uma coisa da qual nunca me esquecerei, no meio do aeroporto de Barbados; ou que aterrei na Dominica, cuja pista colada ao mar nos faz sentir que entrámos dentro da ilha por uma autoestrada.

Depois de uma viagem tão longa para uma distância tão curta (a Liat tem voos directos até cada uma das suas diversas paragens, celebrei a chegada a Antígua no Skullduggery com um bolo de chocolate e um rhum punch. Depois voltei a celebrar com um rhum punch no Mad Mongoose, uma conversa com gente boa e a certeza de que o gato Lager continua feliz. E, como se não bastasse, celebrei outra vez com um rhum punch em casa de amigos, até às dez da noite, que aqui são quinhentas. Hoje bebo água, mas ainda estou embriagada. É bom voltar a casa, mas faltam-me os que me faltam, isto é, quase não me falta nada para me faltar tudo.

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