sexta-feira, 6 de abril de 2012

São Luís, Maranhão, Brasil, 06-04-2012

Passeio pelo Centro Histórico de São Luís. Não é difícil ver a beleza por detrás destes edíficios degradados, do mau cheiro das ruas - dos maus-cheiros, há dois: o conjuntural (ontem foi véspera de feriado) e o estrutural (o centro de São Luís cheira permanentemente a esgoto) - da fealdade que a cobre como a diáfana fantasia a verdade.

A comparação com África é inevitável; as razões são as mesmas: um modelo económico feito para beneficiar as elites. Os efeitos iguais: uma economia que não sabe adaptar-se e renovar-se, desigualdades sociais lancinantes, discursos políticos ocos, irrealistas, como se os políticos vivessem noutro planeta.

Vivem, é verdade.

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Afinal o barco de J. não é um Garcia, mas um Metalu. Um irmão maior do Flot 18 e tão bom como ele. Vende-se hoje, vinte e muitos anos depois da construção, ao mesmo preço de novo, descontando a inflação. É lindo, forte, navega bem - grosso modo o equivalente náutico de uma jovem senhora bonita, inteligente e talentosa.

J. escreve e compõe música. Pediu-me para lhe rever uma canção que escreveu em português. Achei o texto e a melodia muito bonitos, canção francesa com toques de samba, alegre e densa. O tema é a saudade, e pedi-lha para tu a cantares. Disse-me que a ia registar primeiro, o que compreendo. Contou-me que a estava a ensaiar num táxi que o levava para bordo em Salvador logo depois de tê-la composto e se surpreendeu ao ouvir o motorista assobiá-la. "Não deve ser má de todo, para que um motorita de táxi a retenha tão depressa".

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Estou há dois dias praticamente fechado na Pousada por falta de dinheiro. "Não deve haver cidade no mundo onde isto não me tenha acontecido", penso. E penso nos passeios de autocarro ou a pé que dava em Paris para passar o tempo entre duas reuniões, nas contas que tantas vezes fiz em Londres, na semana que passei fechado no hotel em Salvador; penso nos horríveis momentos que vivi em Lisboa, intermináveis, na viagem de regresso de Buenos Aires com cinco dólares no bolso, em Maputo... O único sítio onde me sinto verdadeiramente livre é no mar: nem chaves, nem dinheiro, nem telefone. É para onde preciso de voltar, e depressa.

Tinha previsto ficar dois dias em Veneza, mas acabei por passar uma semana. Foi em 77, há mais de trinta anos. Para compensar o custo extra passei três dias a comer pizze, coisa de que nunca gostei particularmente (salvo raras e honrosas excepções, como a do Road Runner's, em Falmouth Harbour). Agora como no meu quarto o resto da pizza da véspera, fria, uma coisa que nem quente é particularmente boa. Fria porque quero, note-se: podia ir aquecê-la ao apartamento. Mas a qualidade não justifica o esforço. Depois de Veneza passei anos sem tocar numa. Pergunto-me quantas vidas passarei, depois disto.

A pizza é a maior aldrabice alimentar que existe. Custa-me perceber como é que pessoas inteligentes dão por elas aquilo que as pizzerie pedem. Deve ser a caloria mais cara do mercado, a que exige menos esforço e menos talento.

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Só há uma coisa verdadeiramente boa nisto: redescobrir a capacidade e o prazer do sono. Dormir é bom; e quando se sonha ainda melhor. É como ir ao teatro de graça e ainda ser convidado para a peça.

Hoje o calvário da pizza acaba. A senhora que cozinha as massas volta ao trabalho. Não há mal que sempre dure...

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"...for discipline is not ceremonious in merchant ships, where the sense of hierarchy is weak, and where all feel themselves equal before the unconcerned immensity of the sea and the exacting appeal of the work". Ler Conrad devia ser obrigatório em algumas escolas.

"The passage had begun; and the ship, a fragment detached from the earth, went on lonely and swift like a small planet. ... A great circular solitude moved with her, ever changing and ever the same, always monotonous and always imposing".

"The true peace of God begins at any spot a thousand miles from the nearest land".

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